sexta-feira, 6 de maio de 2011

A meritocracia e o ilusionismo

Nas Fatecs e escolas técnicas de São Paulo, quem aprova mais
alunos recebe maior bonificação. Para especialista da Unicamp, modelo gera corrupção no sistema.


Sem reajuste salarial desde 2005 e descontentes com os critérios usados para o pagamento da chamada “bonificação por resultados”, professores das escolas técnicas (Etecs) e faculdades de tecnologia (Fatecs) do estado de São Paulo ameaçam entrar em greve nas próximas semanas......

Uma das principais queixas foi a inclusão, em 2007, de critérios de produtividade para a concessão do benefício aos docentes. Quem aprova mais alunos, recebe um bônus maior. Especialista em avaliação, Luiz Carlos Freitas, professor de Educação da Unicamp, afirma que o modelo gera corrupção no sistema. Confira a entrevista concedida a CartaCapital.

CartaCapital: Como o senhor avalia essa política de bonificação instituída na rede pública paulista?
Luiz Carlos de Freitas: A ideia da bonificação é importada da iniciativa privada. Os reformadores empresariais da educação acreditam que a educação é uma atividade como qualquer outra, passível de ser administrada pelos critérios da iniciativa privada, ou seja, a escola é vista como se fosse igual a uma pequena empresa. Para este pensamento, o problema educacional se resolve com um choque de gestão. Uma empresa vai bem quando os lucros aumentam, e na escola, o equivalente aos lucros são os resultados dos testes. Se eles aumentam, então a escola vai bem, logo seus profissionais merecem um bonus, se as notas não aumentam, então alguém tem que ser responsabilizado, ou seja, demitido – tal como s e fosse uma fábrica de sapatos. Ocorre que não há intercambiabilidade entre a área dos negócios e a área da educação. São lógicas diferentes. No mercado há ganhadores e perdedores e os ganhadores não têm de se preocupar com os perdedores. A educação é um direito de todos e temos de nos responsabilizar pelo avanço de todos. São lógicas incompatíveis. Os testes ganham então uma relevância extraordinária. Há, entretanto, um princípio antigo, de Campbell, que diz que quanto mais um indicador social é usado para controle, mais ele distorce e corrompe o processo social que ele tenta monitorar.

CC: Por que o senhor acredita que o sistema de bonificação por resultados, como o implantado em São Paulo, gera corrupção no interior das redes de ensino?
LCF: Há muitos exemplos que comprovam isso. Recentemente, Beverly Hall, superintendente do sistema educacional de Atlanta nos EUA, foi demitida de seu cargo em função de que uma investigação governamental encontrou fraude na avaliação de 58 escolas públicas de Atlanta. Na Cidade de Nova Iorque, John Klein deixou o cargo de superintendente depois que em junho do ano passado a bolha de desempenho da cidade de Nova Iorque explodiu mostrando que as altas notas que os alunos estavam tirando nas escolas estavam infladas. Cathleen Black, que o sucedeu, vindo de um posto bem-sucedido na iniciativa privada [Hearst Magazines] conseguiu ficar apenas três meses no cargo e foi demitida no começo de abril. Black não conseguiu administrar o sistema de educação da cidade de Nova Iorque, pois não dominava o mundo educacional, apenas era uma gestora bem-sucedida no campo da iniciativa privada. Entre suas gafes está sua recomendação de que as sala de aulas superlotadas de alunos poderiam ser mudadas se houvesse mais controle de natalidade. Isso tudo mostra que entre o mundo dos negócios e o mundo da educação há uma grande distância. A escola não é uma pequena empresa.

CC: O sindicato dos professores do ensino técnico afirma que a bonificação tem sido usada como desculpa para a falta de reajustes salariais nos últimos anos e que o sistema leva em conta critérios que não dependem só do docente, como evasão escolar e aprovação dos alunos. Essas críticas procedem?
LCF: Procedem. Em geral, todos admitem que mais de 50% das variáveis que explicam o bom rendimento do aluno se deve a fatores que estão fora da escola. Entretanto, na hora de pensar nas soluções para aumentar o rendimento dos alunos isto é esquecido e se pensa exclusivamente em termos de variáveis intraescolares, em especial o papel do professor. Isso leva à tentação de aumentar o salário somente para aqueles professores que possam ser associados à melhoria do rendimento de seus alunos, medido em testes, e demitir aqueles que não são associados à melhoria do rendimento do aluno. Por isso, os defensores destas políticas são contra o aumento salarial para todos e são igualmente contra a estabilidade do emprego do professor, pois precisam ameaçar com a demissão ou com o não pagamento de bônus.

CC: Ao incluir como critério do bônus a “produtividade”, isto é, o número de alunos aprovados em relação ao total de matrículas, isso não provoca distorções na avaliação dos alunos?
LCF: A prática diz que sim, como relatei acima no caso de Atlanta nos EUA. Mesmo no caso do Estado de São Paulo, com a aplicação da avaliação do Saresp para rede regular de ensino, esta interferência da avaliação tem sido detectada. Há ainda a questão do aumento de simulados no interior das redes que acaba por tomar tempo precioso da aprendizagem dos alunos que acaba sendo substituído por treino para as provas. Aprendizagem é algo diferente de ser treinado para se sair bem em testes. É corrente nos Estados Unidos o fato de que há estados que rebaixam as exigências nos testes locais para que seus alunos possam se sair bem e então acessarem verbas federais.

CC: No Brasil, há experiências de escolas charter [administradas pela iniciativa privada] no sistema público? De que forma esse tipo de iniciativa está associada à política de bonificação e quais são os riscos dessa aposta?
LCF: No Brasil, a experiência mais próxima deste conceito foi feita em Recife, Pernambuco, no ensino médio, embora tenha sido interrompida. Não há uma avaliação independente dos resultados desta experiência. A única avaliação foi feita por uma agência que atua na própria divulgação da ideia o que torna a avaliação suspeita. As avaliações feitas nos Estados Unidos sobre as escolas charters não são alentadoras. No caso norte-americano, quando as escolas não conseguem fazer com que seus alunos melhorem nos testes, elas podem ser fechadas e transferidas à iniciativa privada por meio de contrato de gestão [escolas charters], em um processo que está previsto em sua lei de responsabilidade educacional. Tal lei, aprovada em 2001, previa que em 2014 todas as escolas norte-americanas deveriam ter seus alunos na categoria de “proficientes” em leitura e matemática. Há um mês o ministro de Educação norte-americano afirmou que 80% das escolas dos EUA não estarão em condições de cumprir esta meta. Ou seja, a lei serviu unicamente para promover a privatização do sistema público de educação norte-americano, destruindo-o com a implantação de escolas administradas por contrato de gestão. Antes destas medidas, os EUA estavam na média do Pisa – o programa de avaliação de estudantes da OCDE – e depois destas medidas, no Pisa de 2009, o país continua na média.

CC: Que lição fica para o Brasil?
LCF: As escolas charter não levaram os norte-americanos a uma melhor posição educacional. Nos testes nacionais igualmente não houve melhora e há quem diga que até piorou. Portanto, estas ações que são no Brasil alardeadas pelos reformadores empresariais como o “Movimento todos pela Educação” e o “Movimento Parceiros da Educação” não se mostraram com condições de melhorar a educação no País que mais fez uso destas medidas. Por que devemos acreditar que fariam diferença no Brasil? Aliás, o Brasil vem melhorando no Pisa sem ter de recorrer a tais medidas.

Rodrigo Martins é repórter da revista CartaCapital há quatro anos. Em 2008 foi um dos vencedores do Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos.
Via CartaCapital, via opensante

Nenhum comentário:

Postar um comentário