sábado, 5 de fevereiro de 2011

Entre a cruz e a constituição


Autor: Marcelo Druyan 
No dia 15 de janeiro, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) divulgou uma declaração oficial sobre o 3º Programa Nacional de Direitos Humanos.
De acordo com o texto – que também trata de outros temas relacionados ao PNDH3 – a CNBB rejeita a criação de mecanismos para impedir a ostentação de símbolos religiosos em estabelecimentos públicos da União [1], pois considera que “tal medida intolerante pretende ignorar nossas raízes históricas”.

RAÍZES HISTÓRICAS

Nenhuma sociedade culta e democrática cometeria o desatino de ignorar suas raízes. A participação da Igreja Católica na história do Brasil, que começa com a missa celebrada em 26 de abril de 1500, é parte de nosso patrimônio cultural. Você pode ignorar a religião, se quiser; mas não pode voltar as costas à própria história.
O problema é que a CNBB erra o alvo. A questão dos símbolos religiosos não remete a uma discussão sobre raízes, mas, sim, a uma reflexão sobre momentos históricos.
Houve um tempo em que a Igreja Católica e seus símbolos viveram uma relação de simbiose com o Estado. O Império oficializou, tardiamente, essa ligação.
Em 1824, Dom Pedro I outorgou nossa primeira Constituição (que foi solenemente jurada na Catedral Imperial, pertencente à ordem dos frades carmelitas). A Carta Magna consagrou o Estado confessional e limitou o culto das demais religiões.
Art. 5. A Religião Catholica Apostolica Romana continuará a ser a Religião do Imperio. Todas as outras Religiões serão permitidas com seu culto domestico, ou particular em casas para isso destinadas, sem fórma alguma exterior do Templo.
E mais:
Art. 95. Todos os que podem ser Eleitores, abeis para serem nomeados Deputados. Exceptuam-se
III. Os que não professarem a Religião do Estado.
Este é o panorama da relação Igreja e Estado antes e durante o Império.

ESTADO LAICO

A Constituição Republicana de 1891 institui o Estado Laico:
Art 72 – A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:
§ 7º – Nenhum culto ou igreja gozará de subvenção oficial, nem terá relações de dependência ou aliança com o Governo da União ou dos Estados.
Daí em diante, as demais constituições (com exceção da “polaca”, em 1937) citam explicitamente a separação entre Estado e Igreja (1934, 1946, 1967, 1988).

MOMENTO HISTÓRICO

A cultura de um povo não é determinada ou revogada por leis. Ao contrário, as leis, de forma geral, refletem um determinado momento histórico e cultural.
Com o advento da modernidade e, mais recentemente, do multiculturalismo; o rigor quanto ao aspecto laico do Estado tornou-se uma necessidade, quiçá uma exigência, para todos os países democráticos.
Em que pese a participação da Igreja Católica na cultura brasileira – O Brasil é o maior país católico do mundo, com 73,8% da população, segundo dados do IBGE – o fato é que O ESTADO já não é confessional. Aqui, não se tratam de raízes históricas, mas de um preceito constitucional, reflexo de um momento bastante diverso daquele que inspirou a Carta Imperial.
Indo além, é necessário salientar que a ostentação de símbolos religiosos em repartições públicas é uma tradição do Estado e, não, da Igreja. Portanto, cabe ao Estado, em primeiro lugar, avaliar o peso de suas “raízes históricas” frente ao contrapeso do momento histórico.

INTOLERÂNCIA

A retirada dos símbolos religiosos dos estabelecimentos da União não é uma tentativa de revogar a cultura religiosa da maioria dos brasileiros, mas apenas de SEPARÁ-LA da esfera pública. Portanto, também não se trata, como quer a CNBB, de um ato de intolerância.
Muito pelo contrário.
Quando o Estado não privilegia a iconografia de uma religião em detrimento das demais, torna notório que não advoga por particularismos. Simbolicamente, acentua seu caráter laico que, na base, prega a tolerância e o pluralismo religiosos, a liberdade de crença e não crença.

MUITO BARULHO POR NADA

A questão deveria ser simples e incontroversa. A retirada dos símbolos religiosos dos estabelecimentos da União é justa e constitucional. Permaneceram, até hoje, como um componente inercial do Estado confessional, alimentado pela indiferença do poder público e pela passividade da sociedade civil.
Todavia, a Igreja Católica reage como se a retirada dos símbolos fosse o equivalente ao bombardeio do Vaticano! Ou, como alegam alguns, o início de uma perseguição contra símbolos religiosos que culminaria – pasmem – na demolição do Cristo Redentor, numa espécie de versão tupiniquim do taleban. 
É irracional! Existe todo um Brasil do lado de fora dos estabelecimentos públicos. Com tanto espaço disponível, por que  tamanha polêmica por alguns centímetros nas paredes da União? Por que a insistência em demarcar território em um ambiente onde territórios não devem ser demarcados? 
A retirada dos símbolos não fere as raízes históricas do catolicismo, tampouco é gesto de intolerância. Por outro lado, confirma positivamente o laicismo e suas representações. E retrata, com sinceridade democrática, um momento histórico em que a Igreja já não tem poderes institucionais para intervir em assuntos e aspectos do Estado.

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[1] Objetivo estratégico VI:
Respeito às diferentes crenças, liberdade de culto e garantia da laicidade do Estado.
Ações programáticas:
c)Desenvolver mecanismos para impedir a ostentação de símbolos religiosos em estabelecimentos públicos da União.
Responsável: Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República
Bule Voador
 .

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