quarta-feira, 14 de julho de 2010

Mídia e clichês de liberdade das Américas

A suposta dificuldade de sustentação da liberdade de expressão nas Américas, e em especial na Venezuela, tende atualmente a ser enquadrada no cenário midiático hegemônico no Brasil como um problema gerado por governantes autoritários em busca de promoção pessoal, que se esforçariam para interditar os meios de comunicação que os aborrecessem. É intrigante perceber como este clichê, embora bastante desgastado, pode ser revivido para obscurecer questões de enorme relevância para sociedades que pretendam aperfeiçoar seu sistema democrático de governo.



Segundo os lugares-comuns repercutidos com frequência, Chávez cassa concessões de TV que lhe fazem oposição, enquanto Lula simpatiza com a possibilidade de restringir a liberdade de imprensa, se isso lhe for favorável. Nas Américas, o norte avançado se caracterizaria pelo primado da mídia livre, enquanto o sul atrasado ainda sofreria tentativas de contenção do pensamento livre movidas por líderes populistas.

A capacidade de disseminação do imaginário preenchido por estes estereótipos ainda surpreende os mais atentos. Mas não deveria. A história é retratada com elementos narrativos pitorescos, às vezes folhetinescos até. Tem tudo para encantar e cativar.

Enquanto tal enquadramento é veiculado, são convenientemente deixados de lado aspectos da necessária regulamentação democrática do serviço público de radiodifusão, incluindo aí as emissoras que exploram comercialmente o espectro de transmissão. Propaga-se a cena que repete mais uma vez a imagem do Estado como inimigo da liberdade, dissociando-o das funções de poder público e confinando-o ao papel de ferramenta de mandatários dotados de desejos totalitários. Reafirma-se a noção de que mídias livres são resultado natural da competição de mercado. Curiosamente, embora tenham surgido episódios recentes que desmereceram ainda mais a defesa intransigente do livre mercado na economia como um todo, na América do Sul ela se mantém firme no campo das comunicações.

Como resultado, é perturbador o reconhecimento da defasagem entre países como o Brasil e o contexto internacional de regulação de mídia. Ao passo que a preservação do interesse público exige a contínua operação de um aparato eficiente e cada vez mais complexo no contexto midiático europeu, no Brasil é difícil saber até o valor de uma concessão de radiodifusão. Os princípios editoriais das emissoras no campo do jornalismo não são nem ao menos esclarecidos. Sua missão social se confunde com seu caráter comercial. Seus acertos contam-se por eventuais rompantes de jornalismo alegadamente investigativo. Neste ambiente de escassez de referenciais seguros, prospera a imagem, construída por meios impressos, de presidentes dispostos a calar as mídias. A regulação da palavra impressa certamente não cabe em uma democracia, exceto contra os casos usualmente respaldados por lei, como calúnia e difamação, mas também é certo que TV e rádios livres de instrumentos de defesa do interesse público sobre sua programação facilitam a difusão, por outras mídias, de simplificações e reducionismos. Se estes são, muitas vezes, a matéria-prima do jornalismo comercial, em oposição ao jornalismo público, a prevalência do mercado no regime de produção de informação jornalística implica um empobrecimento notável da esfera pública.

Chávez parece ter avançado contra um cenário similar ao brasileiro. Se suas investidas podem ou não ser consideradas democráticas, é uma questão ainda em aberto. Alguns consideram perfeitamente admissível e até necessária a não-renovação da concessão pública de uma emissora que teria participado ativamente num golpe de Estado. Na Argentina, tentativas de conter o monopólio da propriedade de mídia para, em tese, assegurar a diversidade de opinião, em linha com o que muito se fez na Europa Ocidental, foram torpedeadas como arroubos dirigistas.

Bem, isso tudo não é novidade para quem milita na área da economia política da comunicação no Brasil. Nova, no entanto, é a dimensão crescente que as pressões pela regulação democrática da comunicação tem assumido em países sul-americanos, de forma que não é descabido esperar por mudanças.

* Danilo Rohtberg é professor da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Unesp, coordenador do site Plural – Observatório de Comunicação e Cidadania.


Observatório do direito à Comunicação

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