terça-feira, 2 de agosto de 2011

Em São Paulo, SUS escancara saúde cada vez mais privatizada e corrupta

Para a promotora de Justiça Anna Trotta Yarid, oferta de 25% dos leitos dos hospitais estaduais para quem tem plano de saúde é “além de ilegal, inconstitucional”.

Gabriel Brito, do Correio da Cidadania

No dia 6 de julho, o Diário Oficial publicou o decreto do governador paulista do PSDB Geraldo Alckmin, que libera os hospitais estaduais geridos pelas Organizações Sociais de Saúde (OSS) a oferecerem 25% de seus leitos a pacientes de planos de saúde particulares. A alegação é a falta de condições para investir no setor, o que poderia ser remediado com a arrecadação dos pagamentos dos planos privados sobre tais atendimentos. Com vistas a discutir mais essa política de desmonte da saúde pública, o Correio da Cidadania entrevistou a promotora de Justiça Anna Trotta Yarid, para quem a medida é, “além de ilegal, inconstitucional”.....

Porém, acima de tudo, Anna Trotta considera a ideia impraticável, simplesmente por conta dos modos de funcionamento dos sistemas público e privado, com procedimentos de encaminhamento de pacientes totalmente opostos. Será, assim, inevitável a prática da ‘fila dupla’ no atendimento. Além disso, a promotora lembra que o decreto é também ilegal, pois, quando da implantação das OSS, ficou estabelecido que elas teriam atendimento 100% voltado ao SUS.

A promotora, integrante da nova diretoria do Movimento do Ministério Público Democrático, lembra ainda que, em questões essenciais à sociedade, como a saúde, não há espaço para desvios de finalidades em nome de interesses privados ou falsamente públicos. “No assunto saúde universal, igualitária e gratuita, não cabe ideologia”, adverte.

Anna Trotta corrobora a visão do relatório alternativo da CPI dos gastos da saúde de 2008, que afirma que tais entidades são “portas abertas à corrupção”, fato que será agravado se passarem a receber verbas dos planos privados de saúde. “Regulamentar a Emenda 29 (que fixa os percentuais mínimos a serem investidos anualmente em saúde pela União, estados e municípios), cobrar mais transparência e ampliação das formas de fiscalização e controle do dinheiro público, a fim de evitar desvio ou malversação, são as verdadeiras medidas eficientes para obtenção de mais dinheiro para a saúde pública”.

A entrevista completa pode ser conferida abaixo.

Como você avalia o Decreto 57.108, com fins de regulamentar a Lei Complementar 1.131, promulgado pelo governador Geraldo Alckmin e que permite aos hospitais estaduais cederem 25% de seus leitos a pacientes de planos privados?
O decreto é ilegal, porque permite que as OSS [Organizações Sociais de Saúde] façam atendimento de convênio particular, quando a própria lei das OSS diz expressamente que as OSS do estado deverão fazer atendimento 100% SUS. Por isso, não é possível a elas celebrar qualquer tipo de convênio ou contrato para esse tipo de atendimento, até porque geraria diferenciação, o que, além de ilegal, é inconstitucional. E veja, tal diferenciação é inerente aos sistemas, que não podem coexistir. Quando somos atendidos pelo serviço público, temos de obedecer à regionalização e hierarquização que são próprias do SUS, ou seja, vamos ao hospital mais próximo de nossa residência, entramos pela Atenção Básica, que é a porta de entrada do sistema público, no caso as UBS [Unidades Básicas de Saúde], e estas nos encaminham para as outras especialidades, quando é o caso. No sistema privado não. Escolhemos o hospital ou médico que queremos, dentre aqueles previstos pelo plano que possuímos, e marcamos a consulta direta com o especialista, não precisamos ser encaminhados por quem quer que seja. Por isso o caminho é muito mais curto e rápido. Além disso, quando pagamos por um plano de saúde, dizemos que queremos exatamente um tratamento diferenciado daquele oferecido pelo SUS. Por isso, na realidade, o problema não é a diferenciação, mas a incompatibilidade dos sistemas.

Diversos juristas e advogados têm se pronunciado exatamente pela ilegalidade do decreto, que atentaria contra a universalidade do acesso à saúde prevista na Constituição Federal, além de criar especificidades no funcionamento do SUS em somente um estado da federação. Essa linha de raciocínio, portanto, é inequívoca, ao contrário do que argumenta o governo?
Com certeza. E diria mais. Não está claro sobre quem e de que forma o dinheiro arrecadado com esse atendimento será cobrado e administrado. Precisamos lembrar que as OSS são instituições privadas e, ao administrarem dinheiro privado, não estarão sujeitas ao controle público. Então, quem fiscalizará essa conta? E como?

Tal medida revelaria um caráter ideológico das políticas do PSDB, semelhante ao que ocorre em outras áreas essenciais?
Muitas pessoas insistem em dizer isso. Ideologia é questão da política pública e da forma de administração. Essas questões, ao contrário, são legais e constitucionais, uma vez que o SUS, para sorte de todos nós brasileiros, está constitucionalmente previsto, e não cabe a qualquer administrador público alterar seus princípios a seu bel prazer. No assunto “saúde universal, igualitária e gratuita”, não cabe ideologia.

Afinal de contas, qual o argumento do governo para sustentar política de cessão de leitos aos planos privados?
O argumento é a falta de dinheiro. Afirmam que esse dinheiro seria uma forma de complementar as despesas públicas e melhorar os serviços prestados. Entretanto, de um lado esquecem que, para que os hospitais públicos concorram com o atendimento de convênio particular, precisarão, antes, de grande investimento. Afinal, o cidadão que faz um plano de saúde busca um tratamento diferenciado, senão utilizaria o SUS, pelo qual já paga através de impostos. E de outro lado, sequer informam como será a forma de administração e fiscalização desse dinheiro. É evidente que destinamos pouco dinheiro para a saúde. Mas isso não pode servir de justificativa para permitir a privatização da coisa pública, mesmo porque não representa solução. Regulamentar a Emenda Constitucional 29 [que fixa os percentuais mínimos a serem investidos anualmente em saúde pela União, estados e municípios], cobrar mais eficiência na gestão e transparência e ampliação das formas de fiscalização e controle do dinheiro público, a fim de evitarmos qualquer tipo de desvio ou malversação, são as verdadeiras medidas eficientes para obtenção de mais dinheiro para a saúde pública.

Você, dessa forma, acredita que, novamente contrariando as afirmações do governo, a fila dupla será um fenômeno frequente?
A diferenciação é inerente aos sistemas público e privado, porque possuem sistemática e lógica diferentes, tal como disse no começo.

Enquanto isso, como fica a questão da dívida dos planos de saúde privados com o SUS?
É uma questão que deve envolver a ANS [Agência Nacional de Saúde], porque é necessário que haja um compartilhamento de informações para que essa cobrança seja viabilizada. Além disso, é necessário um posicionamento do judiciário a respeito da possibilidade da cobrança, ainda muito discutida.

Em sua opinião, o fato de as Organizações Sociais gerenciarem diversos hospitais que serão afetados pelo decreto sugere que tipo de práticas?
Entendo isso como muito temerário, principalmente se lembrarmos que muitas OSS possuem hospitais privados próprios, como é o caso do Santa Marcelina, Santa Catarina, Einstein, Sírio Libanês, dentre outros.

Quanto às OSS em São Paulo, como as avalia, após poucos anos de sua implantação na gestão da saúde, contrapondo as mesmas correntes que agora brigam em torno da entrega de leitos aos planos privados?
Sob a justificativa de obter maior eficiência na prestação dos serviços de saúde, o estado de São Paulo vem se retirando da prestação dos serviços, passando a ocupar a posição de mero gerenciador das políticas públicas de saúde e fiscalizador dos serviços prestados. Entretanto, durante o período em que estive à frente da Promotoria de Saúde Pública, pude verificar que o gestor público não tem clareza quanto às políticas públicas de médio e longo prazo que pretende implantar, e não tem cumprido bem seu papel de fiscalizador das OSS.

Confirmou-se a projeção do relatório alternativo da CPI dos gastos da saúde de 2009, de que tais organizações seriam “porta aberta à corrupção”?
Não existe boa administração sem boa fiscalização. Se não houver uma fiscalização adequada e eficiente, com certeza as portas para a corrupção estarão abertas.

Há iniciativas vindas de dentro do próprio aparelho estatal – como Ministério Público e Defensoria Pública – no sentido de reverter tais políticas privatistas?
Sobre as OSS, existe uma Ação Direta de Inconstitucionalidade que ainda não foi decidida pelo judiciário. Também foi discutido, por meio de ação, o modelo de convênio das AMAS, mas também não há decisão definitiva do judiciário. Portanto, a questão da forma de prestação dos serviços e do novo modelo adotado está ainda em discussão, muito embora já exista uma situação de fato, consolidada, no estado de São Paulo.

Via Brasil de Fato

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