quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Serra, candidato a camaleão

por Luiz Carlos Azenha

Podem procurar as declarações de José Serra sobre quaisquer assuntos. Ele nunca vai além do estritamente necessário. Nunca diz algo que não possa desdizer no dia seguinte. Nunca diz algo de forma inapelável, que não possa dizer no dia seguinte que foi "mal interpretado".

Acho que por trás desse comportamento se esconde um tanto de oportunismo político e também a sintonia com o que eu grosseiramente definiria com o "fazer política do século 21".

O oportunismo tem motivos razoavelmente óbvios. Serra pode mandar que ajam em nome dele -- o que frequentemente acontece -- sem se expor a desgaste político. Isso não é uma característica específica dele, mas de qualquer governante: é importante deixar sempre alguma margem de manobra. Se for preciso, se entrega algum auxiliar para aplacar a sede dos adversários.

Também explica esse comportamento a provável sintonia de Serra com um jeito de fazer política que acredito ser o do novo século.

De um lado, temos um mundo ocidental em que o poder real está na mão de alguns grandes conglomerados econômicos. Eles têm recursos financeiros e humanos maior que o de muitos governos. Movem-se com rapidez através de fronteiras. Controlam as melhores tecnologias. Contratam lobistas milionários para "convencer" governos e parlamentos. São ouvidos na mídia.

Tudo isso reduziu sobremaneira o poder real dos governantes. Estes dispõem, quando muito, de um púlpito através do qual podem pregar ao eleitorado. Isso requer ideias e vontade política, que raramente se combinam em um governante. Roosevelt, nos Estados Unidos da depressão econômica, foi um. Tinha ideias próprias, identidade com uma fatia do eleitorado e foi ao rádio peitar os que tentavam atropelá-lo na mídia, no Congresso e na Suprema Corte dos Estados Unidos. Hugo Chávez, na Venezuela: tirou proveito da falência do sistema político -- do fracasso do pacto entre os dois partidos que representavam as elites locais, AD e Copei -- e sobre os escombros deles construiu o seu bolivarianismo financiado pelo petrodólar, com direito a inventar a sua própria plataforma midiática.

Além dessa caracteristica do mundo moderno -- do poder real estar na mão dos grandes conglomerados --, temos outro fenômeno de época, fruto do desenvolvimento do próprio capitalismo, que é a fragmentação do mercado e, portanto, da cultura. Hoje, se você percorre as ruas de São Paulo, notará que existem os "dark", os "emmo", os "nerd" e uma infinidade de tribos e subtribos nos quais se dividem os jovens de classe média, cuja matriz cultural e intelectual se encontra fora do Brasil.

Não digo isso com reprovação. É apenas uma constatação.

Nessa sociedade multifacetada e despolitizada (no sentido tradicional), em que grupos de interesse se organizam quase tão bem quanto as próprias empresas, o sucesso de um político depende de agradar ao maior número possível de "tribos", causando o menor desgosto possível no menor número delas.

Como a sociedade brasileira não é homogênea, ficaria mais fácil entender o que quero dizer analisando a eleição de Barack Obama, nos Estados Unidos. Obama é um político extremamente calculista e, na prática, não representa nada. Embora tenha iniciado a carreira como liberal do Partido Democrata, ou seja, na centro-esquerda, a verdadeira escola dele é a da política de Chicago. Não é propriamente conhecida como uma escola de princípios, mas da prática: qualquer coisa pelo poder.

A grande dificuldade dos jornalistas americanos que cobrem política é definir o que Obama representa, já que ele não defende qualquer corpo organizado de ideias. Obama representa a si próprio, isso com absoluta certeza. É do "centro pragmático", conforme definiu outro dia um leitor deste site que se disse pós-ideológico (ao que eu respondi que, no Brasil, "centro pragmático" é Sarney-Renan-Collor).

Mas voltando aos Estados Unidos, na campanha eleitoral -- que acompanhei de perto -- Obama conseguiu incorporar os interesses de milhões de eleitores prometendo "mudança na qual se pode acreditar". Prometeu um mimo para cada tribo. Para os sindicatos, restaurar a capacidade deles de negociar salários. Para os pacifistas, acabar com a ocupação do Iraque. Para os gays, reconhecimento público das relações duradouras. E assim sucessivamente. Obama era um pouco para muitos. Raramente se viu Obama dizendo o que ele não era, o que não faria de jeito nenhum. Se fizesse isso, estaria limitando sua capacidade camaleônica pós-eleitoral.

Hoje no poder, Obama continua perseguindo o centro -- os eleitores independentes que foram decisivos para ele em alguns estados-chave. Estima que não precisa da esquerda, que gravitará em direção a ele como o "menos ruim". Não está fazendo tudo o que prometeu, mas também não está não fazendo nada. Empurrou a retirada do Iraque lá pra frente, fechou Guantánamo sem fechar, abandonou a política externa de Bush sem abandonar.

Enquanto assessores se digladiam, posa de árbitro, de olho na reeleição em 2012, diante do Partido Republicano e da extrema-direita que se organiza no Tea Party. Obama fez, no cálculo político, o que Lula fez no Brasil na intuição: se qualificou para ser o árbitro. Presumo que seja esta a escola perseguida por José Serra. Só não vejo ainda qual será a graça de ver um filme sobre a vida dele.

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