sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Imprensa tenta resgatar espírito da Guerra Fria


(pintura chilena)

Se qualquer cidadão dos anos 50, habituado a ler jornais, entrasse numa máquina do tempo e visitasse o Brasil de hoje, encontraria um debate muito parecido ao de sua época. Estadão, Folha e Globo procuram colar no governo o adesivo do comunismo totalitário. E dá-lhe Cuba por toda parte. Muitos lembram, a todo momento, que militantes anti-ditadura não queriam a volta da democracia, e sim a implantação de um regime soviético no país. Esta é a tática mais capciosa, mais hipócrita, mais revoltante - desenterrar ideologias há muito sepultas por esses militantes, descontextualizando épocas e situações. Como se o florescimento dessas ideologias não fosse ligado umbilicalmente à derrota inflingida à democracia por militares e mídia. Se é para lembrar o passado e a bandeira de cada um, seria honesto informar que esta mesma imprensa defendeu o golpe de Estado, através da tática mais vil de todas. Mentindo. Afirmando que o golpe era democrático. Que era uma vitória das forças da democracia! Assim eram as manchetes!

A imprensa não apenas ajudou os militares a violarem a democracia brasileira. Ela também contribuiu para solapar o próprio conceito de democracia. Deliberadamente inoculou enorme confusão ideológica no espírito nacional, afirmando que o preto era branco e o branco, preto.

Os jovens de dezessete anos que decidiram lutar contra a ditadura, como era o caso da ministra Dilma Rousseff (que é o alvo principal desses ataques), haviam perdido a esperança na democracia. Aí está outra consequência nefasta do golpe: aniquilar nos espíritos jovens e idealistas a esperança, o sonho, a poderosa ingenuidade juvenil de achar que pode mudar o mundo - tão ingênua e tão poderosa que às vezes muda mesmo.

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Ontem assisti trechos do debate na Câmara sobre o III Programa Nacional de Direitos Humanos. Todo mundo se manifestou fortemente favorável ao decreto presidencial e identificou, nos ataques que este sofreu da mídia, uma grande ofensiva conservadora. Os representantes dos diversos segmentos que participaram das conferências regionais e nacional mostraram-se bastante conscientes de que os meios de comunicação assumiram o protagonismo da oposição política ao programa, e que eles poderiam tirar alguma vantagem disso, trazendo o debate para um público maior. Demonstraram segurança de que a exposição os beneficia, porque têm os argumentos mais sólidos. Rechaçaram as críticas mais vulgares, que pretendem atribuir intenções ideológicas obscuras a projetos de lei que nada mais são que desdobramentos democráticos da própria Constituição Brasileira. Um surdo "oralizado", presidente de uma entidade ligada aos direitos humanos dos deficientes físicos, fez um discurso comovente afirmando, no entanto, que o sonho de seus representados não é esticar esse debate indefinidamente, e sim levá-lo a uma etapa mais avançada, ou seja, transformá-lo em leis e, sobretudo, em realidade prática.

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Está claro, todavia, que a maioria das críticas ao programa de direitos humanos ganhou um ar caricatural, tendencioso, partidário. Os tucanos se retraíram nas críticas, mas assistem alegremente o incêndio no circo, o que é uma atitude ainda pior, uma covardia obsequiosa, malandra. A imprensa, de qualquer forma, conseguiu o que desejava. A histeria criada, com direito até a José Neumanne afirmando que por muito menos Goulart fora deposto e conclamando: e os militares, onde estão os militares?, criou núcleos extremistas de opinião, e a imprensa não procurou debelá-los. Ao contrário, atiçou-os, publicando cartinhas desinformadas, caluniosas, que associavam um programa elaborado cuidadosamente por elementos democráticos a ideologias soviéticas.

Em relação à mídia, os participantes do debate na Câmara disseram que a versão anterior do programa era ainda mais enfática em relação à necessidade de exercer um controle social sobre os meios de comunicação.

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É preciso vestir as roupas da mídia para poder dialogar com ela. O programa de direitos humanos assinado por Fernando Henrique não metia medo porque a mídia sabia que a palavra final era sempre dela. Ela confiava no governo. Hoje não confia. FHC podia posar como defensor dos direitos humanos com toda a desenvoltura porque a midia e os segmentos conservadores sabiam que possuía a decisão final sobre quais direitos seriam válidos e quais não.

Além disso, não havia, em 1997 ou 2002, quando foram publicadas as primeiras versões do decreto, nenhuma intenção de desgastar o governo. Muito pelo contrário.

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Há um outro item da agenda política que merece a nossa atenção redobrada. O chavismo foi transformado, pela mídia, e quiçá também por seus próprios erros (mesmo que bem intencionados), numa bola de chumbo presa aos pés da esquerda democrática latino-americana. Na derrota de Frei por alguns milhares de votos podemos ver o peso chavista puxando o balão para baixo. O chavismo já não pertence à Chávez. Tornou-se um símbolo. Já não importa o que seja na realidade. Como símbolo, o chavismo exerce forte influência na América Latina. Uma influência negativa eleitoralmente. E por quê? Por que, dentro da Venezuela, Chávez tem amplos espaços para se defender. Ele se esquece, porém, que é atacado em outros países, onde não pode se defender e, portanto, a mídia pode pintá-lo, livremente, das cores mais escuras e tenebrosas. E depois de fazê-lo leva o boneco gigante à rua, para que todos o vejam, e diz: vejam, esse é monstro que deseja dominar a América Latina! Se vocês votarem em Eduardo Frei, em Cristina Kirchner, em Dilma Rousseff, ele atingirá seus objetivos!

Eu entrei em sites e blogs do Chile e constatei que é assim mesmo. Frei perdeu muitos votos para o antichavismo.

E o que é esse chavismo assustador, chamado inclusive de ditadura, apesar de na Venezuela vigorar o sufrágio universal?

Já lhes falei de uma conhecida com quem discuti muito asperamente essas questões. Ela é leitora e fã de Merval Pereira e, portanto, vocês imaginam que maravilha de opiniões ela tem sobre tudo. Para ela, não houve golpe em Honduras, e Merval foi o único a perceber isso. O único no mundo inteiro, diga-se de passagem. Então ela disse:

- Você acha que a Venezuela é uma democracia?

Mas não foi uma pergunta propriamente dita. Foi quase uma ameaça. Do tipo: "você terá a ousadia de afirmar, contra tudo que venho lendo no Globo há anos, que o Chávez não é um ditador odioso?"

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Não se pode subestimar o poder midiático sobre a opinião pública, principalmente sobre a classe média. O Chile é um país de classe média, um pais culturalmente conservador, e a propaganda antichavista fez grandes estragos no prestígio da esquerda chilena junto aos segmentos sob influência de uma imprensa altamente sofisticada. Sim, porque a imprensa latino-americana é sofisticada - tecnologicamente, eu digo. As ditaduras que assolaram a região produziram enormes conglomerados ultramodernos que hoje se vêem ameaçados pela emergência de novas forças políticas e de uma nova configuração social.

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A configuração política brasileira é muito distinta da chilena. Não somos um país conservador culturalmente, apesar dos esforços de César Maia em provar o contrário.

Fonte : Óleo do diabo

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