sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Gramsci fora do lugar numa noite calorenta do Rio




Meu filho dorme mansamente, e traz para o quarto aquela calma que só o sono das crianças é capaz de proporcionar.

Foi um dia muito mais do que abafado: calorento, suarento, quase insuportável. Mais do que os anjos da guarda em que acreditava minha avó, o que embala o sono de Francisco é o ar-condicionado. Já passa das dez da noite, resolvo descer para a rua e encerrar o dia com um suco ou um lanche rápido. Assim que ponho o pé pra fora do hotel, o bafo quente bate em meu rosto como uma bofetada. Mas o pior é o barulho.
Estamos em Ipanema. A rua está tomada de gente: jovens cariocas, jovens argentinos, além de italianos, ingleses e franceses nem tão jovens assim. Música alta vem dos bares. Em todos eles, há telões, com clips, filmes, noticiário de TV. Eles se divertem, de verdade? Quem sou eu para julgar...
A excitação dessa gente parece sem sentido. Mas o estranhamento talvez venha do choque causado entre a felicidade esfuziante da rua, e a serenidade um tanto forçada de quem acabara de botar o filho pra dormir. Ninguém percebe meu mau-humor. Ainda bem. Sinto-me levemente envelhecido.
Além do mais, carrego debaixo do braço um livro sobre Gramsci. Imaginei que encontraria uma mesa tranqüila, num boteco qualquer, onde terminaria minha leitura, antes de voltar pro quarto do hotel. Gramsci talvez seja uma tentativa de dar algum sentido ao que vejo em volta nos últimos anos, às batalhas que tento discernir no caos de cada dia.
Numa noite quente, no verão da zona sul carioca, Gramsci e eu é que estamos fora do lugar, certamente. O caos parece maior do que nunca. Por que gritam tanto, penso comigo?
Caminho até uma casa de sucos. A luz branca, excessivamente branca, ofusca-me. Dez da noite. Trinta graus! Minha chatice escorre por todos os poros, com o suor que molha a camiseta. Vacilo entre o suco de manga e o açaí. O rapaz a meu lado não espera que eu escolha, e passa à frente: “um açaí na tigela, mormão!”. A maneira decidida com que ele faz o pedido me ajuda. Também peço o açaí.
Na televisão, sobre o balcão, gols envelhecidos da primeira rodada dos campeonatos estaduais. Pra que tanta TV? Ninguém conversa. Há frases soltas. Há muito barulho. O balconista troca o canal. O ruído que vem da rua deixa a todos levemente irritados.
Na tela, de repente, cenas do enterro de dona Zilda Arns. O rapaz do açaí olha pra TV, com um ar vazio. O balconista que serve os sucos tem um lampejo de sociabilidade, e pergunta: “quem é a coroa ali que morreu”? Ninguém responde. Eu penso em puxar papo, em tentar explicar, lembro até de Dom Paulo (o sorriso dele é idêntico ao da irmã falecida; mas seria complicado demais explicar quem é Dom Paulo). Um senhor gordo, com o cachorrinho no colo, é mais rápido. “É dona Marilda, morreu feito passarinho”.
Feito passarinho? Debaixo dos escombros do Haiti?
O caos está em Porto Príncipe, ou na falta de sentido dessa noite barulhenta?
O rapaz do suco dá-se por satisfeito com a explicação. O que Gramsci teria a me oferecer no meio de tanto calor?
Engulo o açaí, e volto correndo para o ar-condicionado do hotel.
O sono de Francisco parece fazer mais sentido do que a balbúrdia dos bares, do que a morte de dona “Marilda”.
Ainda tento folhear Gramsci, mas o barulho que sobe da rua ganha a disputa pela hegemonia. Não passo da segunda página. Durmo embalado pelo calor, pela falta de sentido. Mas incrível: durmo feliz.

Fonte: Rodrigo Vianna, em O escrevinhador

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