quarta-feira, 5 de novembro de 2014

'PSDB mostra pouca lealdade ao regime democrático', diz cientista político



Manifestação que pediu intervenção militar em São Paulo foi 'estimulada' por muitos discursos avessos à democracia pelo PSDB
"Para Fabiano Santos, o principal partido da oposição tem responsabilidade de repelir com veemência manifestações como a que ocorreu no último sábado. Ele defende que a esquerda 'repense' o PMDB 

Vitor Nuzzi, RBA

Ao observar manifestações como a do último sábado (1º) em São Paulo, quando pessoas saíram às ruas e pediram impeachment e, em alguns casos, "intervenção militar", o cientista político Fabiano Santos, professor e pesquisador do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj), constata que ao menos uma parte da direita brasileira não mudou seu modo de pensar, desde os anos 1940. E considera grave o fato de o principal partido de oposição, com quadros surgidos da resistência à ditadura, o PSDB, não dar uma resposta à altura e reagir timidamente a um evento dessa natureza. "Acho oportunista e muito arriscado não deixar claro que não há nenhuma relação entre as bandeiras do partido e o que se tem dito nas ruas", diz.

Ele também critica o pedido de auditoria da eleição feita pelos tucanos. O procurador-geral da República, Rodrigo Janot, deu parecer contrário ao pedido, afirmando inclusive que o requerimento é "temerário", por se basear "exclusivamente em especulações sem seriedade efetuadas em redes sociais".

"Eles (PSDB) ficam insistindo nessa clientela. É ótimo para o governo. Não reagir ao que aconteceu em São Paulo é outro tiro no pé", afirma Santos.

Para ele, cabe à oposição mostrar que tem uma agenda para o país, não apenas um plano ortodoxo na economia e uma afirmação de que "tirar o PT" resolveria tudo. Da parte do governo, cabe mostrar capacidade de conversar e mostrar que fazer acordos não é necessariamente ruim para o país, como parte da mídia tenta demonstrar. "Acho que os movimentos sociais estão sedentos de diálogo."

O cientista político avalia ainda que a esquerda brasileira precisa repensar o papel do PMDB, um interlocutor obrigatório. E assim evitar o que ele considera um erro cometido em 1964, antes do golpe, quando o governo não quis negociar com o PSD.

Leia os principais trechos da entrevista.

A manifestação do último sábado em São Paulo, com deputado armado, músico pedindo impeachment, vozes a favor de uma "intervenção" militar, é motivo para preocupação?

É preocupante, porque você percebe que a cultura política da direita brasileira, ou parte dela, não mudou. Desde o final da 2ª Guerra, parte da elite política brasileira se comporta dessa maneira. Tivemos a experiência da ditadura, depois com muito esforço tivemos a transição política. Aprender com os erros, ser capaz de aprender, faz parte da experiência humana. Nesse segmento, todavia, essa característica do ser humano não está ocorrendo.

Há responsabilidade dos partidos políticos?

No PSDB, principal partido da oposição, não vi nenhuma manifestação veemente de suas principais lideranças. Isso é vergonhoso. Acho oportunista e muito arriscado não deixar claro que não há nenhuma relação entre as bandeiras do partido e o que se tem dito nas ruas. Eles não podem fugir a essa responsabilidade. É incompreensível, preocupante. Demonstra pouca lealdade ao regime democrático.

Isso afeta a governabilidade em alguma medida? Em 2010, parece que houve certa "trégua" com o governo eleito. Agora, poucos dias depois da eleição, vemos esse tipo de reação.

Como foi uma vitória apertada, há esse impulso de dizer que só não houve vitória (da oposição) porque teve algum recurso desleal do governo. A matemática só serve para a retórica. Mas a democracia não olha para o número. O vencedor tem toda a legitimidade. Não é que houve uma trégua na eleição anterior, é que a margem de vitória foi alta. O comportamento da oposição tem sido infantil. É uma atitude que afasta o eleitor médio. No frigir dos ovos, vai mostrar ao eleitor (de Dilma) que ele fez a opção correta.

A oposição ficou mais forte?

Pode aumentar ou diluir. Vai depender de mostrar que tem uma agenda compatível e que o governo é incompetente. Até o momento, a gente tem uma agenda de uma proposta ortodoxa na economia. E que bastaria tirar o PT. Parte do eleitorado compra isso, parte não compra. É preciso construir uma agenda, até para o bem do país. Agora, dependerá também do que o governo fará. É preciso costurar o mundo político, uma costura mais arguta, politicamente orientada para a sua base de apoio. Isso pode criar um ambiente melhor para o governo.

No discurso da vitória, Dilma insistiu muito na questão do "diálogo" e na "construção de pontes". Mas as partes se mostram dispostas a conversar, e em que termos?

Acho que o governo tem muitos instrumentos para oferecer no contexto de diálogo. Precisa saber usar, entabular acordos não é exatamente maléfico para o país. Há uma parte da mídia interessada em demonstrar que isso é sempre ruim, e parte da esquerda compra isso. O discurso liberal não acha que a solução é a política. É o mercado. É preciso mostrar que a política e o Estado fazem muita coisa, e que também os partidos mostrem para os grupos sociais que são capazes de produzir benefícios. Acho que os movimentos sociais estão sedentos de diálogo. Acho que os empresários estão dispostos a investir no setor produtivo. Mesmo o setor financeiro precisa ter canais de diálogo. É preciso ter essa dupla estratégia, de conversar no Congresso e na sociedade.

A presidenta não ficará "prensada" entre o PMDB, por exemplo, e os movimentos sociais que esperam uma inflexão à esquerda?

Primeiro, é preciso repensar o PMDB. Parece muito a discussão pré-64 sobre o PSD. O governo não fez acordo com o PSD... Essa visão equivocada acabou levando o país a uma situação muito ruim, durante 30 anos. Ainda que não haja no futuro uma intervenção militar ou pela força, você pode ter um governo à deriva. A esquerda precisa repensar o PMDB, um partido flexível e de centro. E que tem poder. Você precisa conversar com quem tem poder. É preciso conversar, dentro de uma agenda social e de desenvolvimento. O PMDB é o partido que vocaliza os interesses do capital.

Uma concertação?

É uma concertação, que envolva os partidos de centro, os movimentos sociais, os sindicatos. É preciso identificar os interlocutores.

No ano passado, após as manifestações, o senhor falava sobre os "pactos" apresentados pelo governo à sociedade, incluindo responsabilidade fiscal, reforma política, mobilidade urbana, saúde e educação. O país avançou nessas questões?

Acho que o governo avançou significativamente. Conseguiu atrelar os royalties à educação, conseguiu fazer o Mais Médicos. Acho que existe uma agenda muito consistente no âmbito do social, e o governo se elegeu por isso. Evidentemente, a economia precisa se expandir. Na questão da mobilidade, mesmo na Copa o governo demonstrou muito serviço. É claro que tem alguns paradoxos que nenhum governo vai dar resposta de hoje para amanhã. Tem de haver uma ação coordenada entre os entes federativos. Aliás, em saúde e educação também. A reforma política, embora um ou outro ponto possa ser colocado na agenda, trata-se de bandeira muito distante daquilo que realmente afeta a população. Cada país tem uma história, uma institucionalidade específica. Já está demonstrado na ciência política, não há relação entre reforma política e melhoras no sistema. Considerar isso uma panaceia e chamar um plebiscito não é cabível. Acho uma estratégia errada, porque se choca com a Constituição de 1988.

Muito se falou sobre o fato de o Congresso ser mais conservador. Como pode ser a relação com o Executivo?

É com ele que a sociedade tem de se fazer representar. Faz parte do processo democrático. Foi eleito. A direita faz isso com a presidenta. Ela foi eleita pelo processo democrático, que não se esgota pelo âmbito da participação. São marcos fundantes da democracia. O primeiro ponto é não deslegitimar. Há uma gama de pequenos partidos que estão dispostos a conversar. Não é porque a direita cresceu que não haverá diálogo. O centro flexível cresceu. A esquerda diminuiu um pouco. Não há crescimento de uma direita radical, xenófoba. Não há porque olhar para o Congresso e achar que há uma doença política. O PT não soube fazer estratégias corretas do ponto de vista de montar coligações proporcionais. Dá perfeitamente para trabalhar. Vai depender da competência com que se faz isso.

No retorno ao Senado, ontem (4), o ex-candidato Aécio Neves declarou que o governo deve "tomar cuidado para não chegar em janeiro com certo cheiro de fim de festa", em referência à posse. E disse que caberá ao governo dar "gestos objetivos e claros" para que haja diálogo com a oposição. 

Nenhuma novidade. Retórica da ameaça e da arrogância. Fala como se não fosse o derrotado."

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