Obrigado por não trocar de página, obstinado leitor. Ao contrário do que a saga moralista possa supor, o título nada mais é que arapuca para se atrair os olhos. A expressão chula ao final da frase (cujo significado seria “de jeito algum”; “em nenhuma hipótese”), que para muitos soará grosseira e dispensável, vocábulo fuleiro largamente utilizado entre quatro paredes até pelos mais pudicos amantes (ou indecentes gestores corruptos), a mim pareceu bem cabível, a despeito das recomendações maternoeditoriais e comichões do bom-mocismo. Prossigamos.
Ao contrário de mim, uma médica moradora de Sobradinho teve intenção verdadeiramente repelente ao fixar um cartaz no portão de casa com os seguintes dizeres ameaçadores: “Muro contaminado com sangue HIV positivo. Não pule”. Sem dúvida, muito mais criativo e impactante que o tradicional “Cuidado: cão feroz”.
A mulher experimentou notoriedade nos últimos dias, não pela descoberta de alguma técnica inovadora para se colar os ossos (a doutora é ortopedista), mas, sim, pela placa aterradora e por ter colocado sobre o muro da sua casa um sem número de seringas supostamente contaminadas pelo vírus da AIDS (haja sangue e gosma!). Ainda bem que ela teve o bom senso de não despejar sêmen contaminado com treponemas nos ladrilhos. Quem não tem fosso com crocodilos se vira mesmo é com micróbios. Parafraseando o cantor popular Nando Reis, somos os cegos do castelo.
Para justificar a ação bizarra, que a mim pareceu um escarrado e hilário manifesto, a médica alegou não tolerar mais que os meliantes invadissem sua propriedade para surrupiar pertences e aterrorizar a família. O Conselho Regional de Medicina, assim como os marginais invasores, promete ferrar a pobre doutora...
No afã de se protegerem da crescente violência urbana, os cidadãos já utilizaram rezas, mandingas, rotivaileres e inúmeros artefatos insalubres em seus bunqueres, quer dizer, lares. Eu mesmo já testemunhei muros espetados com cacos de vidro, pregos, farpas, arames farpados, adagas afiadíssimas, coroas-de-cristo (amém!), fios elétricos desencapados, dentre outros instrumentos de se fazer sangrar malandro.
Procura-se um recanto no qual se possa dormir com a porta da frente destrancada. A truculência galopa no lombo das gentes que pelejam nas metrópoles e nas corrutelas. Proliferam nas cidades os chamados condomínios horizontais (negócios imobiliários da china, meu caro!): conjuntos de amedrontados bacanas com casas bacanas cercadas de muralhas para se protegerem dos larápios sacanas.
Quando criança, eu ia a pé para a escola, jogava bola na rua (sempre descalço, jamais de au-istar ou tênis tóper / rainha) e pedalava pelo bairro inteiro com riscos mínimos de ser assaltado, sequestrado ou atropelado por bebuns. Embalados no colo chocho da internet e outros artefatos eletrônicos antissociais, intimidados pelo mundo cão que os morde pelas ruas, a criançada se diverte conforme o figurino: meninos e meninas trancafiados em condomínios, à mercê do ziguezague nauseabundo de kombis e vans que delas se ocupam (afinal, com tanto dinheiro a ganhar, com tantos impostos a pagar, quem, nos dias de hoje, teria tempo de se haver com as inconvenientes criaturas?!).
Sinto-me frustrado à beça (um merda, como diria o meu sapiente pai) quando meu filho se declara impedido de pedalar até a escola ou de ir de ônibus visitar a avó (ah, esta necessidade básica ele ainda não perdeu para a modernidade...). Educação super-protetora da minha parte ou, simplesmente, caldo de galinha?
Lamento dizer, filho, mas, pelo andar da carruagem (as vans de antigamente), o pior ainda está por vir. Receio que os amassos noturnos na namorada dentro do carro ou no banco da praça jamais serão viáveis. Fazer — como eu um dia fiz, acredite — serenatas nas madrugadas da cidade, só com coletes à prova de balas (sejam elas dos bandidos ou da polícia mesmo) e de xingamentos do povo mal humorado (tolerância zero à cultura popular).
Enfim, a vida está a cada dia mais fácil (existem vacinas para um tudo de doenças), pragmática (há que se construírem carreiras sempre muito bem sucedidas, a qualquer custo), ligeira (de onde é mesmo que eu te conheço, meu filho?!) e sem graça (como fazer sexo pelo iscaipe ou marcar um golaço com o jói-estique).
Revista Bula
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