sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Liberdade econômica é liberdade política?


Martin Rowson, “Liberty Crucified”. New Humanist, 2008.
Boa parte das críticas dos liberais (no que tange à economia) com relação ao hipertrofiado Estado socialista/de esquerda é procedente. O problema é que o agudo senso crítico e ceticismo que têm para com aquele tipo de economia, esses mesmos liberais não adotam na hora de avaliar seu dogmático credo na super-liberdade econômica.
Chega a me assustar essa crença irracional de que liberdade econômica equivale a (ou conduz à) liberdade política. Que um país mais livre economicamente também é uma nação mais livre em termos políticos, nas garantias dos direitos e liberdades individuais em esferas não econômicas. Isso é um raciocínio “non sequitur” da pior espécie. E isso o próprio “Índice de Liberdade Econômica”, que adoram esfregar na cara de quem critica essa seita misesiana, serve para evidenciar.
Quem são os primeiros dois colocados no ranking?
Hong Kong (nº 1) e Singapura (nº 2).
Dois paraísos da liberdade econômica, não se o discute. Quer fazer negócios? Nessas duas cidades-estados isso lhe será facilitado como em nenhum outro lugar. E há desenvolvimento econômico-financeiro aí? Com certeza! Vertiginoso. Conspícuo em todo o redor.
Porém, essas duas cidades-estados, consideradas “as mais livres do mundo” em termos econômicos, são apenas “parcialmente livres” em termos políticos. E isso quem diz não sou eu, mas sim o Freedom in the World, um relatório anual, comparando país a país, publicado pela Freedom House (que não tem vínculo partidário), o qual o próprio Wall Street Journal (co-autor do Índice de Liberdade Econômica) chamou de “o Guia Michelin para o desenvolvimento da democracia” — em referência aos renomados guias publicados pela Michelin desde cerca de um século atrás. Como foi destacado, Hong Kong ainda não tem eleições diretas para o Legislativo nem para os principais cargos executivos, há denúncia de diminuição da liberdade de imprensa por meio de censura interna (uma sondagem levantou que mais de 60% dos jornalistas de Hong Kong reclamam disso), há acusações contra o aparelho policial (que responde a funcionários públicos ligados ao Partido), incluindo o uso violento de força contra protestantes pacíficos e a até perseguição política feita pela polícia. Em Singapura, por sua vez, há ainda mais restrições a direitos civis e permissões legais para a violação de alguns direitos fundamentais.
Como pode o Bahrein (12º no ranking 2012) ser “mais livre” do que a Holanda (15º) ou a Suécia (21º), a não ser de acordo com os critérios econômicos adotados para se classificar os países no Índice de Liberdade Econômica? O Bahrein? Um país cuja estrutura parlamentarista (com uma pseudoequivalência entre as duas câmaras) é questionado por mais de 70% da população, insatisfeita com a falta de representatividade? Mais livre? Jura?
Enfim, há diversos outros exemplos que demonstram como não há necessariamente uma relação entre liberdade político-civil e um nível de liberdade econômica referenciado pela política comercial de um país; sua carga tributária; o nível de intervenção estatal; a política monetária; a liberalização financeira; as políticas bancárias e financeiras; as políticas de mercado de trabalho; a proteção aos direitos de propriedade; as regulamentações empresariais, trabalhistas e ambientais; e o tamanho do mercado negro — todos estes, critérios utilizados para “ranquear” os países no ILE. Ou seja, para ser mais claro, é curioso que leis que imponham um salário-mínimo necessário à manutenção da dignidade humana, que regulem a preservação do meio-ambiente, e que exijam mais transparência nas contas das corporações tornem um pais “menos livre“, enquanto baixos impostos sobre os negócios, leis duras contra devedores (permitindo inclusive o confisco de sua casa para pagar o banco), e pouca ou nenhuma regulamentação quanto à saúde e à segurança dos trabalhadores tornem outro país “mais livre“. Nota: é interessante como os economicamente liberais acham muito bem-vinda a intervenção estatal, p. ex., 1) na hora de proteger o direito à propriedade privada e 2) na hora de fazer o cliente ou consumidor inadimplente pagar sua dívida na marra — ainda que a exigência deste fazer-pagar não raro implique passar por cima daquele primeiro direito.
Enfim, entendam, eu não sou favorável a Estados hipertrofiados, que interferem demais na economia. Na verdade, concordo com muitos dos argumentos da direita liberal, sobretudo no que tange à imensa e indecente carga tributária que somos obrigados a pagar. Mas tenho senso crítico e ceticismo bastantes para não cultivar o dogma de queliberalismo econômicoequivale ou leva a liberalismo político, garantidor de direitos humanos e liberdades civis fundamentais. Uma coisa não tem nenhuma relação de causa e efeito direto com a outra.
Por isso mesmo há tanto filha-da-puta egoísta que estufa o peito e anuncia com orgulho: “Eu sou liberal.”
Vejo com olhar crítico esse conceito de liberdade (dos economicamente liberais) que considera “ser livre” a vida numa sociedade que protege os direitos do empresário, do banqueiro, do especulador financeiro, do proprietário de terras etc., mas vê como “ser oprimido” o fato se estar sob um Estado que tenha TAMBÉM leis que protegem o trabalhador (do qual depende o empreendedor, aliás) e as partes hipossuficientes nas relações de negócio, bem como colocam a dignidade humana acima de uma dívida perante alguma instituição financeira — permitindo, p. ex., que se penhore quase todos os bens do devedor, MENOS o próprio teto em que vive com sua família.
O fato é que, se liberdade econômica é algo que prezo, enquanto humanista que sou, estes outros direitos e liberdades que mencionei também me são tão ou mais preciosos ainda.
No http://www.bulevoador.com.br/2012/06/liberdade-economica-e-liberdade-politica/

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