segunda-feira, 28 de março de 2011

O novo momento político

O atual momento político é particularmente instigante. Está-se no início de um novo tempo. As eleições do ano passado se constituíram no capítulo final da consolidação de um novo paradigma político e econômico do que pode ser chamado de a era Lula. 
Agora se inaugura o ciclo final de consolidação de um novo modelo em que um dos pontos centrais é o da pacificação nacional. Após a guerra eleitoral do ano passado, esse movimento deixou a esquerda assustada e a direita perplexa. Mas é o fecho correto para encerrar o movimento anterior e entrar no novo tempo. 
As crises da inclusão
O amadurecimento de um país ocorre por processos sucessivos de inclusão social e política. Cada movimento provoca crises políticas de tamanho proporcional ao da inclusão pretendida. A lógica é simples e foi dissecada por Afonso Arinos em artigo de 1963 - que divulguei recentemente. 
Os novos incluídos lutam por ocupar espaço e sofrem a resistência dos setores encastelados no poder. Segue-se uma luta surda ou declarada, na qual entram os piores ingredientes da política, porque mesclando interesses, preconceitos e temores. Nos Estados Unidos do século 19, resultou na Guerra da Secessão. No Brasil, é possível identificar pelo menos quatro movimentos de inclusão-conflito:
1. No fim do século 19, o fortalecimento da classe agrária paulista, em detrimento da monarquia, o surgimento de uma classe média de profissionais liberais nas grandes cidades, que leva à Proclamação da República e a um período de distúrbios políticos. Há uma vitória dos fazendeiros, em detrimentos dos coronéis regionais, dos novos industrialistas e da própria monarquia.
2. A partir dos anos 20, a geração de migrantes e filhos molda uma nova classe social nas grandes cidades. Some-se a reação regional contra a política do café-com-leite (São Paulo-Minas), o aparecimento de uma cultura urbana consolidada. Resulta em distúrbios políticos e militares durante toda a década, desembocando na Revolução de 1930. Getúlio, então, consolida o processo de inclusão das novas massas, mas dentro de um quadro ditatorial.
3. A partir dos anos 50, há o nascimento de uma nova classe média urbana, fruto da industrialização do pós-guerra. São 13 anos de conflitos intermitentes, resultando no golpe de 1964. Como o próprio Arinos aponta (ele mesmo um líder da UDN), explorou-se o preconceito, a guerra fria e outros estratagemas visando criar o clima propício a um golpe militar. Tudo bastante ajudado pela falta de pulso do governo João Goulart.
4. A partir do início da era Lula, começa a consolidação de um novo mercado de massas, graças a políticas compensatórias e ao próprio redesenho da manufatura mundial, que se voltou para consumidores de baixíssima renda.Os três movimentos anteriores resultaram em grandes batalhas políticas com desestabilização dos governos constituídos. Foi esse o embate enfrentado por Lula em um momento em que o principal agente político pós-redemocratização - a velha mídia - ainda não fora exposta aos novos ventos da modernização.
Vimos os conflitos inerentes a todo período de inclusão social. Em uma primeira fase, o velho morreu, o novo ainda não nasceu, os diagnósticos são precários, resultando na perda de rumo.
Mas – ponto fundamental - essa impaciência pelo novo é captada inicialmente pela população, embora de modo ainda difuso. O eleitor pressente a direção a ser seguida, embora ninguém saiba ao certo o caminho e abre espaço para a etapa seguinte.
O caminho a ser seguido fica amarrado ou ao surgimento de estadistas – aqueles capazes de entender e promover a mudança -, os visionários – que enxergam, mas não sabem como chegar até lá – e os meramente medíocres – que empurram com a barriga, às vezes nem por demérito mas pela falta de um amadurecimento das ideias.
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Nos anos 80, os governos Figueiredo e Sarney foram tipicamente desse terceiro estágio. A única bandeira a vigorar no período foram os planos de estabilização, tidos como mágicos a acima da política.
Já Fernando Collor enxergou nitidamente o novo. Havia uma vontade nacional contra a centralização do período anterior, contra o burocratismo, contra o peso do Estado que impedia o desabrochar de novas forças sociais e econômicas. Foi eleito devido às bandeiras que desfraldou. Seu discurso foi tão poderoso que chegou a influenciar o programa do PT na época, que acabou esbarrando na resistência de alguns núcleos. Collor se enrolou na própria inabilidade política e terminou devorado pela esfinge, assim como Carlos Andrés Perez, na Venezuela. Eram os típicos visionários. Teve o mérito de clarear o período posterior.
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FHC pegou as ideias prontas e o terreno aplainado. Completou o trabalho de Collor com grande habilidade política e nenhuma visão sobre a nova etapa. Tivesse tido a visão sobre o momento seguinte, completar-se-iam os vinte anos no poder preconizados por Sérgio Motta. A que se seguiu à reconquista dos direitos civis e dos consumidores seria a etapa da grande inclusão social, da ampliação das organizações sociais, da preparação para a nova sociedade de consumo de massa que se avizinhava e da recuperação do sonho do desenvolvimento.
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Lula foi eleito pelos novos ventos. Já em 2002, sua eleição representou o novo movimento, a vontade política crescente de combater a miséria e a fome, em contraposição ao frio mercadismo de FHC.
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Há dois momentos na vida do governante: as eleições, onde se manifesta o sentimento difuso do eleitor; e o dia a dia, no qual os agentes dominantes são a mídia, a opinião pública midiática e os parlamentares.
No dia-a-dia eram dominantes os interesses consolidados em torno do neoliberalismo. Gastos sociais eram apresentados como desperdício, qualquer política compensatória como paternalismo estéril.
Eram esses os dois grandes desafios a serem perseguidos. O primeiro, como conduzir esse gigantesco processo de inclusão social; o segundo, como mudar o paradigma sem produzir uma desestabilização política cujo enredo era parte integrante da história política do continente.
Como explicado, Lula enfrentou dois desafios consideráveis: administrar a grande inclusão social do período e mudar os paradigmas vigentes nos anos 90, do mercadismo sem visão social e sem punch desenvolvimentista.Os paradigmas do período anterior eram: todo gasto público é desperdício; todo gasto social é paternalista e cria vagabundos; todo o espaço às organizações sociais visa fomentar a subversão; qualquer investimento no Estado significa a volta do estatismo anterior.
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Lula assumiu o governo com algumas idéias-chave. O foco principal – expresso no seu primeiro programa, o fracassado Fome Zero – era o do combate à miséria. Em torno disso, montou sua estratégia política, fundada em alguns pontos.Esvaziar os temores provocados por sua eleição. Fazer caber no governo o extenso arco de tendências do PT e aliados. Em vez da aliança com um grande partido (como FHC com o DEM), a montagem de uma frente de pequenos partidos que seriam turbinados para crescer.Reduzir todos os focos potenciais de instabilidade.
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A lógica política de Getúlio Vargas e mesmo de Fernando Henrique Cardoso era a de dividir para reinar.
Já a estratégia de Lula consistiu em somar, agregar e de atrair todas as fontes potenciais de conflito. Deu uma volta enorme a um custo elevadoFez concessões ao mercado, entregando-lhe as chaves do Banco Central. Procurou reduzir as críticas dos exportadores criando ferramentas artificiais de lucro – como o "swap reverso" que permitia aos exportadores lucrar no mercado financeiro com a apreciação cambial ao mesmo tempo em que perdiam com suas operações comerciais. E fortaleceu de forma expressiva os grandes grupos nacionais.
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Houve alguns erros inicias graves que quase comprometem seu projeto político. A distribuição de cargos se deu sem controle, sem critérios. A estratégia de se aliar a pequenos partidos, contrariando a lógica proposta por José Dirceu (copiada de FHC) de se aliar a um grande partido fisiológico, resultou no episódio conhecido como "mensalão" , que quase liquida com o governo.
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Mesmo assim, a estratégia original foi seguida à risca e se encorpando na medida em que o governo aprendia a gerenciar. Antes, montou-se o Conselho de Desenvolvimento Social para atrair parcela expressiva do empresariado e de organizações sociais. Depois, um conjunto cada vez mais amplo de políticas voltadas para a inclusão social: o Luz para Todos, o Pronaf (Programa de Financiamento para a Agricultura Familiar), o biodiesel, o Reuni (bolsas de estudos para universidades privadas), a recuperação do salário mínimo e o maior de todos, o Bolsa Família. No final do governo, percebeu-se o resultado da enorme volta dada por Lula: um país em que cabiam as multinacionais, o mercado financeiro, os movimentos sociais, as políticas compensatórias. Para tanto, haveria a necessidade de reduzir o pesado grau de preconceito e radicalização que caracteriza todos os processos radicais de inclusão social.
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Como vimos até aqui, procurei mostrar o difícil desafio de conduzir o país em momentos de larga inclusão social e política e em momentos de mudança de paradigmaEm todos os períodos da história, essas mudanças significavam a hegemonia de setores específicos sobre outros – fazendeiros sobre a monarquia, industrialistas sobre fazendeiros, mercadistas sobre industrialistas etc.
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Em meu livro "Os Cabeças de Planilha", de 2005, tentei descrever esse processo. O grande salto se daria quando aparecesse um estadista que fizesse todos os setores se verem como participantes de um mesmo todo. É só aí que se consolida o sentimento de nação, reduzem-se as disputas internas e monta-se um projeto de país. Não imaginava que poucos anos depois essa realidade se instalaria no país à maneira como o país superou a crise, a extraordinária visibilidade internacional de Lula, eventos esportivos como a conquista das Olimpíadas e da Copa do Mundo de futebol.
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Na cerimônia de premiação da revista Carta Capital, Lula fez talvez seu discurso mais importante, o chamado discurso-síntese. Dirigiu-se a Ivan Zurita, presidente da Nestlé. Disse-lhe que os lucros haviam aumentado. E sabe por que? Porque na outra ponta o Bolsa Família havia dado recursos para as famílias se alimentarem. E era esse aumento de consumo que turbinava os lucros da Nestlé.
Naquele exemplo simples, quase óbvio, estava a chave do novo modelo, o novo paradigma substituindo os processos anteriores de inclusão parcial, com conflitos potencializados.
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O novo paradigma inclui valores herdados do período anterior – como a responsabilidade fiscal, que se consolida no segundo governo FHC e a estabilidade monetária, do Plano Real. E traz novos valores, do combate à miséria, da remontagem e do ativismo do Estado, da recuperação da capacidade de investimento, da criação de multinacionais brasileiras etc.
O desenvolvimentismo não se completou por conta da estratégia lenta e gradual de mudar a política monetária do BC. Esse será o grande desafio do governo Dilma. Especialmente após as fantasias geradas pelo crescimento atípico do PIB no ano passado. Mas, com a adesão de praticamente todos os setores aos novos paradigmas, o único discurso capaz de desestabilizar o modelo e produzir crises políticas era o do preconceito. Isso explica a campanha pesadíssima de José Serra, utilizando fartamente a imprensae a Internet para ataques desqualificadores – "Dilma assassina", "matadora de crianças" etc.
Terminadas as eleições, os próprios governadores do PSDB – Geraldo Alckmin, em São Paulo, Antonio Anastasia, em Minas – moldavam o discurso para os novos tempos, reduzindo atritos com sindicatos, promovendo mudanças nas políticas sociais, habitacionais, praticamente endossando os novos paradigmas. Por isso mesmo, a maneira de completar o modelo é buscar a pacificação nacional, promover o pacto e trazer a disputa política para o campo dos países civilizados. Haverá novas disputas políticas, novos partidos, mas sem tergiversar com os princípios básicos do combate à miséria e a busca do bem estar e do desenvolvimento.
By: Nassif

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