domingo, 21 de setembro de 2014

Os inimigos de Getúlio continuam entre nós

Reprodução
Getúlio Vargas
"Ao ódio respondo com o perdão; E aos que pensam que me derrotaram respondo com a minha vitória", da carta-testamento
Ao fim de cinco anos de pesquisas, três volumes e 1.654 páginas, nem assim o jornalista Lira Neto, autor daquela que passa a ser a biografia definitiva de Getúlio Vargas ousou optar por uma das versões maniqueístas acerca de uma figura pespegada de polêmicas e mergulhada em contradições. Ante personagem tão multifacetado, o biógrafo eximiu-se de um juízo final.
“Para muitos, ele foi o grande responsável pela modernização do Brasil, ao pôr em prática um modelo nacional-desenvolvimentista capaz de direcionar, em pouco mais de duas décadas, um país agrário para o rumo efetivo da industrialização”, escreve Lira Neto. “Sob essa mesma perspectiva, a vasta legislação trabalhista instituiu o necessário equilíbrio na relação entre patrões e empregados, superando os resquícios da escravocracia mais arcaica.”
Para o lado de lá da fronteira político-ideológica, o chamado populismo varguista seria “a expressão mais pronta e acabada do uso das massas como instrumento de dominação política”. Pela voz dos desafetos, a incorporação dos trabalhadores e das classes médias ao cenário nacional “teria sido apenas uma forma de legitimar o líder autoritário e personalista, dando sustentação a um projeto de poder autocrático e incompatível com a verdadeira democracia”.
Não há controvérsia que resista, no debate sempre incendiário, a duas certezas que o distanciamento histórico impõe, a respeito de Getúlio. A primeira é que, ao desfechar contra o peito o tiro que pôs fim à própria vida e, por extensão, ao cerco brutal dos inimigos civis e fardados que exigiam sua renúncia, o ex-ditador e então presidente eleito pelo voto popular reiterou a dignidade serena de um político que, nas reviravoltas da conjuntura, acreditou no diálogo e na conciliação, mesmo quando o ambiente estava contaminado pelo ódio dos que ele derrotara.
A outra verdade, inapelável, mostra que os inimigos que cobraram de Getúlio a remissão pelo sangue continuam por aí, eles e os seus descendentes, como zumbis insepultos, com a mesma retórica arcaica, o mesmo rancor retrógrado, o mesmo desprezo aos pobres e deserdados. Nem parece que 60 anos se passaram desde o sacrifício de honra, pois os inimigos de Vargas e do que ele representou continuam ativos, truculentos e  delirantes, desafiando hoje, num repertório de coincidências assustadoras, aqueles que se colocam ao lado do povo e da justiça social.
A feliz e marcante diferença é que as Forças Armadas, reintegradas ao convívio democrático, parecem ter desistido de qualquer protagonismo político, relegando ao baú infame da história figuras caricatas como o brigadeiro Eduardo Gomes, golpista empedernido, o marechal Eurico Dutra,  duplamente traidor de Vargas, o general Juarez Távora, que viria a ser humilhado por Juscelino Kubitschek em 1955, e outros menos votados.
A escalada do rancor contra um presidente legítimo, ancorada na retórica tonitruante do jornalista Carlos Lacerda a açular a sofreguidão conspirativa dos quartéis, ecoa hoje, com palavras incrivelmente iguais e verdades duvidosas, nos editoriais dos jornalões e nos noticiários da tevê, no palavrório dos taxistas e em comentários das redes sociais. Seguindo as pegadas de Lira Neto, eis aqui três exemplos de semelhanças gritantes:
O perigo comunista e a foto com Prestes: O acirramento ideológico insuflado pela Guerra Fria serviu de pretexto para que o Partido Comunista, robustecido pelo voto democrático em 1945 (elegeu, por exemplo, 18 vereadores no Distrito Federal, o dobro da UDN do Brigadeiro e do PTB de Vargas), fosse colocado na ilegalidade pelo patético marechal Dutra, eleito, aliás, com o apoio velado do getulismo. Muitos dos comunistas foram se abrigar sob o guarda-chuva do PTB, o que foi suficiente para que a imprensa conservadora passasse a ver, à sombra do getulismo, o espectro do bolchevismo. Uma foto, devidamente manipulada pelos que buscavam ressaltar o conluio, levou um aguaceiro ao moinho dos reacionários: Getúlio e Luís Carlos Prestes, líder do PC, lado a lado num palanque no Anhangabaú, em São Paulo, em novembro de 1947. Getúlio discursava e a foto do jornal A Noite, do finório Chatô, sugeria que o próprio Prestes segurava o microfone para o ex-ditador. O corte na foto fora proposital. “A associação dos dois inimigos da democracia é não somente uma afronta como uma intolerável ameaça ao Brasil”, reverberou o editorial do Diário Carioca. Imprimiu-se a lenda. Na verdade, Getúlio e Prestes nem sequer se cumprimentaram num evento de apoio ao candidato anti-Adhemar de Barros. O ex-presidente fez seu discurso, desceu pelos fundos do tablado e se retirou. Não ouviu o discurso de Prestes – e estava longe quando tumultos explodiram na praça. Os comunistas, àquela altura, tinham uma pauta política distante do trabalhismo. Uma de suas vítimas, nos anos 50, seria o ministro do Trabalho, João Goulart. Acusavam Jango de, ao melhorar a vida dos trabalhadores, amaciar a inevitável luta de classes.
O “Pai dos pobres” e a ira dos ricos: Em fevereiro de 1954, a facção radicalizada do Exército ensaia romper com a legalidade democrática no explosivo “Manifesto dos coronéis”. As 86 assinaturas prenunciavam o elenco que iria dez anos depois impor ao País uma ditadura de 21 sombrios anos. O pretexto era o “perigoso ambiente de intranquilidade”. Resposta aos convites à ruptura sistematicamente feitos por jornais como o Correio da Manhã, do histérico José Eduardo de Macedo Soares, O Globo, de Roberto Marinho, o imperioso império de comunicação do chantagista Assis Chateaubriand (já com a novidade ainda que retrita da televisão) e pela Tribuna de Imprensa, de Carlos Lacerda, ex-comunista e agora panfletista da extrema-direita. Na verdade, o estardalhaço todo era alimentado por decisões que reafirmavam o compromisso de Vargas com uma economia não tutelada pelos Estados Unidos: a criação da Petrobras e da Eletrobras e a restrição à remessa de lucros. O alvo preferencial dos militares e de seus alcoviteiros civis era o ministro do Trabalho, João Goulart, que se movimentava para conseguir um aumento de 100% para o salário mínimo. O mínimo que a direita dizia à época é que melhorar a vida dos trabalhadores podia quebrar o empresariado e o País – e que, portanto, medidas assistencialistas acabam se voltando contra aqueles que o governo pretendia assistir. Soa familiar? A crise cobrou a cabeça do ministro Goulart, mas o contorcionista Vargas, ao se dirigir aos “trabalhadores do Brasil” no tradicional pronunciamento de 1º de maio, surpreendeu-os com a boa-nova do aumento propugnado por Goulart. O salário mínimo passou de 1,2 mil cruzeiros para 2,4 mil cruzeiros (1.268 reais, em valores de hoje). Os insubmissos não iam engolir a afronta. A elite branca, enfatiotada e encapelada, antecipou-se. Quando Vargas ousou aparecer na tribuna do Hipódromo da Gávea para o Grande Prêmio Brasil, no dia 1º de agosto, tributou a ele uma vaia mais do que orquestrada.
O “mar de lama” e sua gota d’água: Há aspectos nebulosos (e farsescos) no episódio que acabou por acuar Getúlio de vez : o atentado da Rua Toneleros, na madrugada de 5 de agosto. A versão do inquérito oficial e das investigações paralelas da “República do Galeão” – a  Aeronáutica se insubordinou, ávida por vingar a morte do major Vaz num suposto atentado a Lacerda – aponta para uma operação de aloprados próximos da Presidência, mas à revelia do presidente. Lacerda, que saiu de vítima, com um pé enfaixado (os laudos médicos sumiram e o jornalista não deixou a polícia periciar o revólver que usou no tiroteio), acusou diretamente Getúlio. “As fontes do crime estão no Catete”, escreveu na Tribuna da Imprensa. “O governo de Getúlio é, pois, além de imoral, ilegal.” Carlos Lacerda sempre botou sua verve de tribuno a serviço de duas causas: a derrubada de Getúlio e seu próprio narcisismo. No início da campanha presidencial de 1950, Lacerda foi claro: “O senhor Getúlio Vargas senador não deve ser candidato à Presidência. Candidato, não deve ser eleito. Eleito, não deve tomar posse. Empossado, devemos recorrer à revolução para impedi-lo de governar”. O golpismo estava no DNA do “demolidor de presidentes” (definição da historiadora Marina Gusmão de Mendonça).  A ironia é que a tal “revolução” que Lacerda apregoava, adiada pelo gesto heroico de Vargas em 1954, abortada de novo na reação à posse do vice Goulart, em 1961, e finalmente concretizada na “redentora” de 1964, acabaria por cortar as asas do Corvo agourento.
*Reportagem publicada originalmente na edição 815 de CartaCapital, com o título "Os zumbis de 1954"

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