segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Nicolelis fala de religião e ciência



A Ascenção - Ilustração de Gustavo Doré

Do Paulolopes
Por Maria da Paz Trefaut 
Dica @Be_neviani

O mais renomado cientista brasileiro da atualidade, Miguel Nicolelis, vive entre Brasil, Estados Unidos e Suíça. Às vezes completa essa triangulação em uma semana e nem sabe em que fuso horário está. Mas isso não o incomoda. Com projetos nos três países, o neurocientista paulista, fanático pelo Palmeiras, tem a ambição de fazer um adolescente brasileiro tetraplégico dar o pontapé inicial na abertura da Copa do Mundo de Futebol de 2014. Para isso, usará uma veste robótica controlada pela força do pensamento.

Desvendar a possível interação cérebro- máquina é um dos grandes desafios de Nicolelis, referência na pesquisa com próteses neurais, cujo trabalho integra a lista das "Dez Tecnologias que Vão Mudar o Mundo", do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT).

Professor de neuroengenharia da Universidade Duke (EUA), tem projetos educacionais igualmente ambiciosos no Brasil. Um deles é em Macaíba, no Rio Grande do Norte. Ali deverá ser inaugurado, no início de 2012, o "Campus do Cérebro", uma escola em período integral que beneficiará 5 mil crianças, do berçário ao ensino médio. Já o "Educação para Toda a Vida", que começa na barriga da mãe, vai prestar assistência gratuita para 15 mil gestantes na periferia de Natal.

Ele concedeu à Planeta a entrevista que segue.

Se um tetraplégico der um pontapé na bola, na abertura da Copa de 2014, será uma revolução na ciência. O que ela tem de essencial?

É uma nova forma de abordar a questão da reabilitação e uma nova forma de entender o cérebro. Sem uma nova teoria do cérebro a gente não teria conseguido chegar a essa tentativa de fazer uma aplicação clínica. É também uma revolução tecnológica, porque essas aplicações não vão se restringir à medicina. As interfaces cérebro-máquina envolvem interações com nossos computadores e com as ferramentas que usamos diariamente.

Esses tratamentos devem ajudar a romper o estigma das doenças?

Essa é uma das razões pelas quais escrevi este último livro [Muito Além do Nosso Eu, recém-lançado pela Companhia das Letras,]. ara mostrar que o que a gente chama de normal e anormal é separado por uma fronteira muito tênue. É muito rápido um cérebro dito normal evoluir para um dito patológico. Para um de nós ficar esquizofrênico não é preciso muito.

É um processo químico?

Entre outras coisas. No frigir dos ovos, tudo se resume a uma mudança de balanço de neurotransmissor e de atividade elétrica do cérebro. A gente percebe que são pequenas variações que levam você a ouvir vozes, ter delírios. Nos dias de hoje, aliás, a humanidade curiosamente é dominada por três esquizofrênicos que ouviam vozes, olhavam para o céu e achavam que alguém estava falando com eles.

Quem são?

Jesus Cristo, Maomé e Abraão. Muito provavelmente os três precisavam de haldol (medicamento para esquizofrenia). É arbitrária qualquer classificação que defina as bordas da normalidade. Cada vez mais a intolerância e o preconceito esculpem essa borda com seus interesses próprios ideológicos e políticos. Quando você vê o cérebro por dentro e começa a entender o que acontece, percebe como é fácil ir de um lado para outro.

Você falou de três símbolos religiosos. Você é ateu?

Sim, mas acho que a religião faz parte do sistema nervoso. Como o cérebro é um simulador da realidade, ele cria um modelo e uma ilusão de realidade para cada um de nós. Ele precisa de uma história: de onde viemos? Como começou o universo?

Materialista ou religiosa?

Exatamente. Os pigmeus africanos acham que a gente saiu do céu, que havia uma corda e eles foram descendo. Toda cultura tem uma história. O problema é que algumas são excludentes e prejudiciais ao bom convívio da espécie, na medida em que elegem os eleitos e os não eleitos.

A questão dos comandos cerebrais envolve telepatia?

Não, porque a telepatia pressupõe que a energia espontânea do cérebro é capaz de transmitir pensamentos.

Há energia no cérebro?

Ele tem um campo elétrico e magnético, mas muito pequeno. Não tem como um sinal sair do cérebro, passar pelo crânio e ir da minha cabeça para a sua. É impossível! Mas você pode registrar esses sinais, transmiti-los artificialmente - como a gente já faz - e mandá-los para uma máquina ou, em teoria, para outro cérebro. É nisso que estamos trabalhando.

Esse é o objetivo da brainnet?

Estamos trabalhando na ideia original, brain to brain interface. Trata-se de pegar o sinal de um cérebro e mandar para outro e ver se ele entende. Se for possível com um par de cérebros, será possível em qualquer combinação. Claro que tecnologicamente isso tem dificuldades enormes: não basta registrar o sinal, mas entregá-lo para outro cérebro. Em teoria, a ideia é factível.

Como você vê o futuro...

Bem diferente do atual. A gente tem a tendência de ter medo, porque todos os sinais do futuro são dramáticos.

... ... da máquina humanizada...

Isso é uma barbaridade científica. Não há nenhum computador que tenha a chance de reproduzir atributos humanos. Isso é pura balela, propaganda ideológica. É uma visão capitalista, de que você não vale nada e pode ser substituído por um robô. A máquina consegue executar movimentos repetitivos. Não consegue escrever poesia, pintar como Picasso, tomar decisões baseadas na natureza humana. Todas as características que fazem a gente ser como é resultam de processos extremamente complexos no cérebro e são fenômenos não computáveis.

Isso define o limite da tecnologia?

Claro, ela é uma expressão da nossa capacidade criativa. Por isso são tão interessantes esses achados neurofisiológicos recentes, que mostram que todas as ferramentas que criamos são assimiladas pelo cérebro como uma extensão do nosso corpo: mouse, caneta, raquete de tênis, bola, carro, bicicleta. O cérebro cria a ilusão do que o nosso corpo é. E tudo o que a gente experimenta é uma ilusão; é um modelo do mundo.

Tudo é ilusão?

Sim. Se seu cérebro fosse diferente, você ia ver o mundo diferente. A sua história de vida foi diferente da minha; nós dois olhamos uma rosa vermelha e ela evoca memórias peculiares em cada um. Até recentemente a gente achava que a sua experiência e a minha, ao olhar uma coisa assim, era a mesma. Hoje a gente sabe que não é: o cérebro tem uma opinião. Esse ponto de vista foi construído ao longo da sua vida e da minha e ao longo da nossa espécie do ponto de vista evolutivo. Nosso cérebro vai ter um papel cada vez mais relevante na ampliação do nosso alcance como espécie. O nosso corpo vai perder relevância.

Mas vivemos o culto do corpo.


Pois é, até hoje o culto do corpo dominou nossa espécie. Então, quem aproveitou, aproveitou. A partir daqui, quem vai ganhar o embate é a mente. A seleção natural de quem vai sobreviver privilegiará aqueles capazes de usar a mente para agir com uma cornucópia de equipamentos, ferramentas e tecnologias que serão controláveis apenas por pensamentos. Antes, sobrevivia quem caçava bem. Amanhã será a vez de quem conseguir usar a mente para controlar 200 equipamentos ao mesmo tempo.

Diz-se que usamos uma porcentagem ínfima da nossa capacidade.

Mentira. Na verdade, a gente usa tudo o que tem. Se tivesse mais, usava também. A gente perde neurônios a partir dos 18 anos, mas é uma perda muito pequena. Num certo ponto da vida essa perda passa a ser relevante: você vai esquecendo coisas e não tem mais a mesma agilidade mental.

Como você cuida dos neurônios?

Pensando. Desafiando a mente a pensar em coisas a que não estou habituado. É como um exercício físico.

Não cansa?

Demais. Tem dias que o esforço é tanto que eu capoto e acordo no outro. Estou ligado o tempo inteiro. Para mim isso não é trabalho, é prazer.

Vinte anos fora do Brasil modificaram a sua visão?

Ah, o exílio é o maior elixir do patriotismo. Você vê as coisas que não são boas, mas isso não abate as maravilhas que existem aqui. Temos muito potencial, que agora começa a aflorar de forma caótica. Mas temos um grande desafio pela frente. Nossa classe polícortica é muito fraca, muito pobre, dissociada da realidade. É uma classe que só pensa no espólio, em como extrair para si o que for possível. A situação da população melhorou bastante nos últimos anos, mas ainda falta muito para se construir uma cidadania plena. A educação é o único caminho.

Você se considera ousado?

Sim, desde o futebol na rua. Sempre me meti onde não era chamado.

E só encontrou espaço para se desenvolver fora?

Não havia muito espaço para minhas ideias quando deixei o Brasil. Ao pensar em voltar, fui desencorajado.

Por quem?

Pelo chefe do departamento que, claramente, tinha seus protegidos e sabia que minha volta ia causar problemas. Era 1991 e a situação brasileira era muito complicada, com o confisco do governo Collor. Perdi toda a poupança que tinha e nunca mais recuperei. Mas minha grande crítica é que acho que grande parte da ciência brasileira é humilde. As pessoas têm medo de ousar, têm complexo de que não se pode fazer coisa grande, ambiciosa. Têm medo.

Isso prejudica o Brasil?

A ciência brasileira é muito provinciana. A academia de ciências também, e a maneira de financiar é cartorial. Nosso modelo é um dos mais perniciosos para um jovem cientista penetrar. Os sujeitos mais seniores dominam tudo e se você não tem um padrinho não consegue nada, porque é clube fechado. Nos Estados Unidos é o contrário: as possibilidades de financiamento para os jovens são garantidas de forma a assegurar uma renovação contínua de talentos. Aqui, o negócio é manter o status quo.


Este texto foi publicado originalmente na edição 467, agosto de 2011, da Planeta.

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