segunda-feira, 14 de novembro de 2016

NA GUERRA, QUEM MORRE SÃO OS PEÕES...

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"O erro da ditadura foi torturar e não matar”
 (deputado federal Jair Bolsonaro, militar da reserva)
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Quando analisamos os fatos ocorridos na 1ª Guerra Mundial (que decorreu do desenvolvimento de um novo nível de produtividade de mercadorias como consequência da segunda revolução industrial fordista estadunidense do início do século XX e fenômenos sociais por ela desencadeados, que geraram a disputa pela hegemonia do mercado internacional), podemos extrair alguns ensinamentos elucidativos quanto ao sentido deste genocídio que ceifou a vida de 20 milhões de pessoas. Tratou-se do da primeira aparição dos sintomas, hoje, consolidados, do que viria a ser a globalização dos mercados.

Naquele que foi até então o maior confronto militar da História, demonstrando toda a bestialidade da chamada civilização ocidental, forças militares europeias, sedentas de poderio econômico-militar, jogaram na fogueira de uma sangrenta guerra mundial (na qual foram utilizados gases mortíferos contra soldados entrincheirados e sem proteção suficiente contra tal recurso ignóbil), milhões de homens incultos que sequer sabiam o porquê de ali estarem e sem que sequer entendessem o idioma dos seus companheiros de armas e adversários. 

A maioria desses homens vinha das colônias europeias na Ásia e na África (principalmente os indianos, chineses e africanos da costa ocidental norte da África, mas também de muitos outros lugares). 

Foram milhões de pessoas trazidas compulsoriamente de seus rincões rurais e doutrinadas para o heroísmo militar por chefes militares que falavam os seus idiomas ou dialetos. 

São muitos os tristes relatos dos soldados saudosos das suas terras natais; da incompreensão quanto ao que estavam fazendo (matar pessoas contra as quais não tinham o menor ressentimento); e da certeza da morte iminente, que ficaram gravados em cartas, fotos, filmes e até em falas e músicas em gravações de discos.     

Eram peões, enfim. 

Recorro a este exemplo histórico, emblemático do caráter belicista do capitalismo (que elimina todo e qualquer sentido de convivência fraterna e virtudes humanas, positivando o seu oposto), para dizer que vivemos sob uma mesma mentalidade, cem anos após. 

O festival de horrores foi mais intenso ainda na 2ª Guerra Mundial, ocorrida apenas 21 anos depois, cujo balanço macabro saltou para mais de 50 milhões de óbitos. Então, não podemos jamais esquecer estas lições que parecem já se esmaecer em nossa memória coletiva, embora estejam muito longe de pertencerem a um passado sem conexão com o presente. 

Ledo engano. As causas da guerra de ontem são as mesmas dos dias de hoje, com o agravamento das diferenças próprias da realidade tecnológica, com seus impasses político-econômicos e monstruosa letalidade. 

Às guerras convencionais que ocorrem hoje mundo afora, ou conflitos políticos internos de guerras civis que não são poucos (Ucrânia, Síria, Cáucaso do Norte, Iraque, Afeganistão, Mali, Nigéria, Sudão, Sudão do Sul, Líbia, República Cento-Africana, Somália, República do Congo, Paquistão, Filipinas, Iêmen, Israel/Palestina, e outras) somam-se sintomas de guerra urbana como as explosões de revoltas contra a intolerância racista nos Estados Unidos. 

Tudo isso resulta de uma forma de mediação social one world que se tornou anacrônica. 

No Brasil, país tido tradicionalmente como infenso às guerras convencionais e que promove uma das maiores miscigenações raciais do planeta (que é, verdadeiramente, um mérito nosso!), observamos um número de assassinatos urbanos que supera muitas das guerras hoje em curso e acima citadas. 

Tivemos em 2014 uma média nacional de 143 mortes por homicídios/dia (hoje está maior), que correspondeu a um total de mais de 52.000 óbitos por ano. Espantosas e inaceitáveis 25,81 mortes para cada 100 mil habitantes, que, se lhes fossem aplicados os critérios da Organização Mundial de Saúde, equivaleriam a um surto epidêmico. 

O pacifista Brasil tem uma guerra urbana cujas causas e consequências são atribuídas única e exclusivamente à ineficiência do aparato policial, sem que se discutam as causas e responsabilidades sistêmicas em tal genocídio. 

A grande maioria das pessoas que engrossam essas estatísticas é de jovens pobres da periferia, em sua maioria negros, miscigenados de negros, índios e brancos pobres, analfabetos. Integrantes, enfim, da geração nem-nem (que nem estuda nem trabalha, não apenas por culpa deles mesmos, mas também, e principalmente, devido a questões estruturais sistêmicas). 

Podemos concluir sem qualquer esforço sociológico mais acurado que somos uma fábrica de criminosos marginalizados e descamisados (afora os tradicionais criminosos do colarinho branco, que aqui brotam como cogumelos, mas não são encontrados nas estatísticas de assassinatos).  

Não há estrutura policial, judiciária e prisional que possa conter tal avalanche de criminalidade. 

Qualquer um que analise o dia-a-dia de uma delegacia em qualquer estado brasileiro vai notar a total incapacidade do aparelho policial em cumprir a sua função social (e isto quando seus membros não estão em greve, o que vem ocorrendo com frequência...). 

Da mesma forma, o aparelho judiciário (juízes, promotores públicos, funcionários e logística funcional) vem se mostrando incapaz de cumprir os trâmites legais e e julgar todos os processos. 

E, por fim, podemos constatar que os estabelecimentos prisionais nos remetem às masmorras medievais, como todos sabemos e como deve ter observado a ministra Carmem Lúcia, presidente do Conselho Nacional de Justiça, ao visitar recentemente tais estabelecimentos.

Um preso é financeiramente mais oneroso do que um professor e o Estado capitalista falido, agora com dificuldades de pagar até salários de aposentados e funcionários ativos, não pode fazer frente a criminalidade de tal proporção. Assim, os seus agentes policiais matam e morrem sem que nos aproximemos um milímetro da solução de tal problema social crônico. 

Daí a impropriedade (para não dizer ignomínia) de se considerar que a responsabilidade pelo genocídio urbano brasileiro é das vítimas. E seria também hipócrita inculpar apenas as autoridades, fazendo de conta que não temos nada com isso, numa cômoda transferência de responsabilidades, até sermos atingidos pessoalmente pela violência... 

Nas estatísticas das mortes estão também incluídos os jovens policiais egressos da periferia que, do assim como antigos feitores negros de escravos (ou como alguns judeus nos campos de concentração nazistas), açoitam os seus irmãos de raça, matando e morrendo em nome de um sistema que oprime a todos eles. 

Seja na guerra convencional ou na urbana, hoje como ontem, os que morrem são quase sempre os peões. 
Por Dalton Rosado
https://naufrago-da-utopia.blogspot.com.br/2016/11/na-guerra-quem-morre-sao-os-peoes.html

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