segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Os equívocos da esquerda no campo jurídico


A operação lava-jato é a parte mais visível dos resultados nefastos do avanço das forças conservadoras no campo jurídico brasileiro e de um pensamento ideológico hoje praticamente hegemônico, firmado no punitivismo desmedido e na retirada dos direitos e garantias fundamentais, sob as mais variadas justificativas.

O “combate à corrupção”, “combate ao crime organizado”, “combate à impunidade” são os subterfúgios retóricos de uma ação política de ampliação dos poderes de alguns órgãos como Ministério Público e Polícia Federal. Esse discurso é baseado no maniqueísmo de “ficha limpa” versus “ficha suja”, termos como “homens de bem”, corruptos, traficantes e outros instrumentos discursos que dividem a sociedade entre uns e outros, sendo que “os outros” devem ser extirpados do seio social.

“Morreu um traficante”, “morreu um bandido”, quem se importa em saber seu nome verdadeiro e as causas da morte? Não sem razão, o discurso de certos juízes é de que “devemos passar o Brasil a limpo”. Esse discurso de limpeza é semelhante ao de representantes do jornalismo mundo-cão em programas como Cidade Alerta e coisas do gênero.

Alguns procuradores da república tratam processos judiciais sob o viés da medicina, sendo que o acusado, de sujeito de direitos passa a ser um câncer para as autoridades jurídicas. Não sem razão, o Procurador que chefia a operação lava-jato foi convidado a participar do 31º Congresso Brasileiro de Cirurgia, vestiu um jaleco branco, posou para fotos e foi aplaudido ao buscar na medicina a justificativa para sua atuação institucional.

Esta é uma expressão do positivismo italiano, da época pré-fascista, que dizia que um Estado não poderia prescindir do direito penal porque este constituiria um remédio a manter vivo seu organismo. É a velha invocação do Estado como organismo biológico vivo. Pura estultice autoritária.

A esquerda, salvo raríssimas e imprescindíveis exceções, aceitou o jogo punitivo. PT, PSOL e outros partidos não se deram conta das armadilhas punitivas que pisaram e apostaram no discurso punitivo com a intenção de combater o “crime organizado”, seja lá o que raios isso signifique. O termo “colocar a Rota na rua”, embora claro seus objetivos de extermínio da população pobre e negra que representa foi colocado no discurso de candidatos petistas para tentar agradar parte de um eleitorado que sempre o rejeitou.

O PT, ao assumir a presidência não teve um projeto de poder no sentido de se alterar as instituições, arejá-las aos ventos democráticos, retirar leis penais que sustentaram a ditadura e fazer a disputa política no campo jurídico que deveria ser feita.  Descuidou por desídia ou às vezes até por sintonia ideológica. O erro e a irresponsabilidade política como força hegemônica na esquerda ao relegar transformações no campo jurídico, não aprofundar reformas legais sob o viés da Constituição de 1988 e não indicar juristas comprometidos com uma visão libertária de mundo para cargos importantes do sistema de justiça foi fatal.

A esquerda descuidou do seu papel de formação de uma consciência jurídica crítica e agora assistimos, estarrecidos, ao uso do poder punitivo sem qualquer controle.

Lei dos Crimes Hediondos, nova Lei de Drogas, Lei das Organizações Criminosas, Lei do Terrorismo são alguns dos exemplos que contribuíram para o encarceramento em massa de pobres e para o caos penitenciário brasileiro.  Importante registrar que essas leis foram votadas com o apoio, inclusive, de partidos de esquerda.

Válido, neste ponto, lembrar o discurso do então deputado do PT, Plínio de Arruda Sampaio, quando da votação da Lei dos Crimes Hediondos:

“(…) Por uma questão de consciência, fico um pouco preocupado em dar meu voto a uma legislação que não pude examinar. (…) Tenho todo o interesse em votar a proposição, mas não quero fazê-lo sob a ameaça de, hoje à noite, na TV Globo, ser acusado de estar a favor do sequestro. Isso certamente acontecerá se eu pedir adiamento da votação.” – Deputado Plínio de Arruda Sampaio (PT)”.

É preciso, portanto, além de analisar criticamente as arbitrariedades cometidas na operação lava-jato, compreender as razões que levaram o sistema de justiça penal a tamanho retrocesso e o quanto dele se deu com o apoio ou complacência do próprio campo da esquerda.

Duas ações do Poder Executivo são emblemáticas da persistência nesses equívocos. A negociação no tema da maioridade penal, quando o governo topou aumentar o prazo de internação de crianças e adolescentes no Senado com a justificativa de receber apoio da bancada do PSDB para barrar a votação da PEC da maioridade na Câmara é sintomática.

Ainda que o apoio dos tucanos pudesse ocorrer, o que não se viu na prática, um governo de esquerda jamais poderia aceitar aumento do prazo de internação porque ademais de ineficaz para os fins pretendidos é uma tremenda contradição com uma visão de mundo de um partido ou governo de esquerda. Ao aceitar o jogo punitivo, a ação do governo acabou soprando a favor dos ventos punitivos que vinham da Câmara.

Outro equívoco inexplicável foi o envio da proposta que tipifica o crime de terrorismo. Já bastante esmiuçada as razões da sua desnecessidade por juristas sérios, no entanto, em um contexto de completo avanço das forças punitivas, o envio de projeto que criminaliza de forma aberta condutas só pode ser vista como disparate.

De modo que ao não ter claro um projeto de poder para o sistema de justiça, sequer uma visão unificada quanto as armadilhas que a ampliação do poder punitivo representa para as classes menos favorecidas, o PT perdeu uma histórica oportunidade de reformar as instituições e o aparato legislativo com vistas a compatibilizá-lo com a Constituição da República de 1988 e fundamentalmente com a ideologia de um partido de esquerda.

Fazer uma reflexão sobre a relação entre esquerda e poder punitivo é questão fundamental nos dias de hoje. Embora talvez seja um pouco tarde, refletir pode servir, ao menos, para se evitar a insistência no erro.

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