quinta-feira, 9 de julho de 2015

A Indústria do Encarceramento


Leonardo Isaac Yarochewsky, Justificando.com


"Se afasto do meu jardim os obstáculos que impedem o sol e a água de fertilizar a terra, logo surgirão plantas de cuja existência eu sequer suspeitava. Da mesma forma, o desaparecimento do sistema punitivo estatal abrirá, num convívio mais sadio e mais dinâmico, os caminhos de uma nova justiça." - Louk Hulsman

O homem já voou (1906); já pisou na lua (1969) e passeou no espaço; descobriu a penicilina (1941); inventou o telefone (1876); inventou o rádio (1920) e a televisão(1925); transplantou coração (1967); clonou mamífero (1996); mas, para punir seres humanos ainda se utiliza da prisão.

A prisão continua sendo há mais de dois séculos a principal forma de punição para os “perigosos”, “vulneráveis”, “estereotipados” e “etiquetados”, enfim, para os que são criminalizados (criminalização primária e secundária) em razão de um processo de estigmatização, segundo a ideologia e o sistema dominante.
Apesar de todas as descobertas e avanços da humanidade a indústria do encarceramento, alimentada pela indústria do crime, continua funcionando a todo vapor, em pleno século XXI.

A “matéria-prima” utilizada pelas indústrias do crime e do encarceramento, ou seja, a clientela penal, em regra é composta por pessoas que estão fora da sociedade de consumo, sociedade guiada pelo mercado e pelo perverso sistema capitalista. Pessoas que estão “fora do jogo”. No dizer de Zygmunt Bauman[1] “os jogadores incapazes e indolentes devem ser mantidos fora do jogo. Eles são o refugo do jogo, mas um produto que o jogo não pode parar de sedimentar sem emperrar. Além disso, há uma outra razão por que o jogo não se beneficiará em deter a produção de refugo: é necessário mostrar aos que permanecem no jogo as horripilantes cenas (como se lhes diz) da outra única alternativa – a fim de que estejam aptos e dispostos a suportar as agruras e tensões geradas pela vida vivida como jogo.” 

Ainda, de acordo com o respeitado sociólogo polonês, “dada a natureza do jogo agora disputado, as agruras e tormentos dos que dele são excluídos, outrora encarados como um malogro coletivamente causado e que precisava ser tratado com meios coletivos, só podem ser redefinidos como um crime individual. As ‘classes perigosas’ são assim redefinidas como classes de criminosos. E, desse modo, as prisões agora, completa e verdadeiramente, fazem as vezes das definhantes instituições de bem-estar”.

Hodiernamente, a população carcerária americana (maior do planeta) ultrapassa a cifra de 2,3 milhões de presos. Como em boa parte do mundo, nos EUA a população carcerária tem um inegável caráter seletivo. Verifica-se que 63% dos presos são negros ou hispânicos, embora estes representem apenas 25% da população total.

Referindo-se ao superencarceramento nos Estados Unidos, Loïc Wacquant[2] afirma que o mesmo “serve antes de mais nada para administrar o populacho que incomoda, mais do que para lutar contra os crimes de sangue, cujo espectro assombra as mídias e alimenta uma florescente indústria cultural do medo aos pobres...”

O Brasil caminha a passos largos para atingir o seu primeiro milhão. Hoje a população carcerária brasileira ultrapassa a cifra de 715.000 presos, contando os que estão em prisão domiciliar, sendo a terceira maior população carcerária do mundo. Uma proporção de 358 pessoas presas para cada 100 mil habitantes. E como já foi dito alhures, na sua esmagadora maioria composta pelos mais vulneráveis e excluídos da sociedade de consumo e capitalista. Uma população compostas por jovens, negros, pobres, sem qualquer formação e de baixa escolaridade.

“Mais cárcere, mais confinamento, mais repressão”, afirma com precisão e toda sua experiência, a criminóloga venezuelana Lola Aniyar de Castro[3]. Segundo ela, a realidade na América Latina nos séculos XX e XXI caracteriza-se por apresentar os mais elevados índices históricos de violência carcerária, trata-se de “um barril de pólvora sempre preste a explodir”. A construção de novas prisões, sempre proposta como solução para o problema da superpopulação carcerária, constata Aniyar de Castro, levará a mais encarceramento, posto que “mais espaço disponível tem como resultado mais confinamento”. Afirma, ainda, com toda lucidez criminológica, que “a luta contra as prisões é uma luta social e política. É, pela seletividade da prisão, é também uma luta contra a pobreza”.

Para Nils Christie[4] o tamanho da população carcerária é uma questão normativa. Segundo o sociólogo e criminólogo norueguês, falecido em 27 de maio do corrente ano, “é necessário colocar limites ao crescimento da indústria carcerária. A situação exige uma discussão séria sobre os limites do crescimento do sistema formal de controle do crime. Pensamentos, valores, ética – e não o impulso industrial – devem determinar os limites do controle, o momento em que este já é suficiente”.

Sobre outras formas de punição que não a cadeia, vale lembrar a parábola trazida pelo abolicionista Louk Hulsman[5] (Penas Perdidas: o sistema penal em questão). “Cinco estudantes moram juntos. Num determinado momento, um deles se arremessa contra a televisão e a danifica, quebrando também alguns pratos. Como reagem seus companheiros? É evidente que nenhum deles vai ficar contente. Mas, cada um, analisando o acontecido à sua maneira, poderá adotar uma atitude diferente. O estudante número 2, furioso, diz que não quer mais morar com o primeiro e fala em expulsá-lo de casa; o estudante número 3 declara: ‘o que tem que fazer é comprar uma nova televisão e outros pratos e ele e ele pague’. O estudante número 4, traumatizado com o que acabou de presenciar, grita: ‘ele está evidentemente doente; é preciso procurar um médico, levá-lo a um psiquiatra, etc...’. O último, enfim, sussurra: ‘a gente achava que se entendia bem, mas alguma coisa deve estar errada em nossa comunidade, para permitir um gesto como esse... vamos juntos fazer um exame de consciência’”.

Como salienta o autor, nesta parábola tem-se quase toda a gama de reações possíveis diante do fato atribuído a uma pessoa. O estilo punitivo, os estilos compensatório, terapêutico e conciliador... Chamar um fato de “crime”, diz Hulsman, significa excluir de antemão todas outras linhas de reação punitiva, outros estilos de controle social: medidas sanitárias, educativas, de assistência material ou psicológica, reparatórias, etc...

Presentemente não há como negar que a pena é uma clara manifestação do poder. Não sendo a pena racional, distingue-se das demais sanções jurídicas por exclusão. Como salienta Zaffaroni, “a falta de racionalidade da pena deriva de não ser um instrumento idôneo para a solução de conflitos. Logo, toda sanção jurídica ou imposição de dor a título de decisão de autoridade, que não se encaixe nos modelos abstratos de solução de conflitos dos outros ramos do direito, é uma pena”.

A prisão, ainda que “modelo”, é uma ofensa à dignidade humana. Já foi dito inúmeras vezes, é fábrica de delinquentes, é uma universidade do crime, universo alienante e artificial de onde ninguém sai melhor do que entrou. A prisão é uma contradição em si. Como punir e castigar e ao mesmo tempo reformar? Como (re) socializar privando da vida em sociedade? Como (re) educar na prisão? Na verdade, o que ocorre é uma “pseudo-regeneração”, pois aqueles que passaram por uma prisão e saíram depois de cumprir suas penas, já não são mais os mesmos que entraram. Aqueles morreram.

No filme “Um sonho de liberdade” (The Shawshank Redemption), de 1994, de Frank Darabont, há um diálogo protagonizado pelo brilhante ator Morgan Freeman, que vive o papel do preso “Red”(Ellis Boyd Redding), e o Responsável pela condicional que descreve com peculiaridade a chamada “pseudo-regeneração” e as consequências nefastas do longo período de encarceramento, do seguinte modo:

[Responsável pela condicional] “Ellis Boyd Redding. Sua ficha diz que já cumpriu 40 anos da prisão perpétua. Está regenerado?” [Red] “Regenerado? Bem, vamos ver. Não tenho a mínima ideia do que seja isso” [Responsável pela condicional] Significa que está pronto para se reintegrar à sociedade… [Red] “Sei o que acha que significa, filho. Para mim é uma palavra inventada. Uma palavra dos políticos para que jovens como você possam vestir terno e gravata e ter um emprego. O que quer saber de verdade? Se me arrependo do que fiz?” [Responsável pela condicional] “Está arrependido?” [Red] “Não há um único dia em que não me arrependa. Não é porque estou aqui ou porque você acha que eu deveria. Ao recordar do passado, vejo um jovem, um rapaz idiota que cometeu um crime horrível. Tento falar com ele. Tento passar um pouco de juízo para ele. Ensinar como são as coisas. Mas não posso. Aquele garoto não existe mais. O que sobrou foi esse velho aqui. Tenho de conviver com isso. Regenerado? É uma palavra de merda. Então, filho, carimbe os seus formulários, porque não quero mais perder tempo. Pois para falar a verdade estou pouco ligando.”

O regenerado é “apenas uma múmia ressequida e meio louca” escreveu Dostoievski em sua obra autobiográfica Recordação da Casa dos Mortos, onde descreve o período de 4 anos em esteve preso na Sibéria.

Michel Foucault[6], em seu Vigiar e punir, referiu-se ao “poder disciplinar” da prisão pelo qual a disciplina fabrica “corpos submissos” e “dóceis”. Segundo Foucault, “o poder disciplinar é, com efeito, um poder que, em vez de se apropriar e de retirar, tem como função adestrar; ou sem dúvida adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e melhor...”

Todos os autores (penalistas ou não) com um mínimo de visão crítica e um pouco de conhecimento da realidade carcerária são unânimes em reconhecer e descrever os males da prisão e o efeito criminógeno do cárcere.

Contudo, a incapacidade dos atores do direito penal e da criminologia de superar a obsessão do sistema punitivo pela pena carcerária traduz, no dizer crítico de Salo de Carvalho[7], “inúmeras faces dos seus discursos e de suas práticas: do gozo com os suplícios e da vontade de punição à incapacidade de propor rupturas radicais; do temor pelo novo à resignação com as lógicas punitivas. E o discurso político, em particular jurídico-penal, em razão de sua tradição metafísica, acaba neutralizando as formas de enfrentamento da situação, pois invariavelmente, remete a discussão a problemas reais ao plano dos fundamentos da punição, dos critérios de definição das penas, do grau de lesão da conduta ao bem jurídico, entre outros temas extremamente caros aos teóricos da pena e do delito”.

Por tudo, é necessário e urgente que a sociedade reflita sobre a cultura do encarceramento em massa, que ao longo dos anos, principalmente das últimas duas décadas, tem levado à incapacidade e à morte vários seres humanos. Para tanto, é preciso repensar o binômio crime/prisão. É imprescindível buscar alternativas ao atual sistema de punição degradante e desumano. Mas, para isso, é forçoso desmascarar o discurso das teorias manifestas (legitimantes) da pena.  É imperativo que os penalistas e criminólogos se desprendam de uma vez por todas do falacioso discurso da (re) generação, (re) educação, (re) socialização e (re) integração. Posto que todos estes “res”, como bem foi dito pelo personagem Red, interpretado por Morgan Freeman no filme “Um sonho de liberdade”, são palavras de “merda” e que somente ajudam a justificar o atual e degradante sistema penal.

Quem sabe no futuro próximo alguma mente brilhante apresente uma nova descoberta ou invenção mais humana e menos humilhante e, portanto, compatível com o Estado democrático de direito, que não a prisão. Mesmo que, para isso, seja preciso “roubar os anéis de saturno”.

Leonardo Isaac Yarochewsky é Advogado Criminalista e Professor de Direito Penal da PUCMinas
[1] BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Trad. Mauro Gama, Cláudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro:Zahar, 1998.
[2] WACQUANT, Loïc. As duas faces do gueto. Tradução Paulo Cezar Castanheira. São Paulo: Boitempo, 2008.
[3] CASTRO, Lola Aniyar. Matar com a prisão, o paraíso lega e o inferno carcerário: os estabelecimentos “concordes, seguros e capazes” in Depois do grande encarceramento. Organização Pedro Vieira Abramovay, Vera Malaguti Batista. Rio de Janeiro: Revan, 2010.
[4] CHRISTIE, Nils. A indústria do controle do crime. Tradução Luiz Leira. Rio de Janeiro: Forense, 1998.
[5] HULSMAN, Louk. Celis, Jacqueline Bernat de. Penas perdidas. O sistema penal em questão. Trad. Maria Lúcia Karan. Niterói: Luam, 1993.
[6] FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Trad. Ligia M. Pondé Vassalo. Petrópolis: Vozes, 1987.
[7] CARVALHO, Salo. Substitutivos penais na era do grande encarceramento. in Depois do grande encarceramento. Organização Pedro Vieira Abramovay, Vera Malaguti Batista. Rio de Janeiro: Revan, 2010.

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