sábado, 2 de maio de 2015

Quando a religião atrapalha a política


ilustração-política
Existe uma artimanha um tanto complexa, mas muito difundida entre os que ocupam ou desejam obter os cargos a chefe do poder executivo ou representativo no Congresso Nacional, que é utilizar discursos religiosos como trampolim para fins políticos particulares. Assim, se algum candidato for um empresário capitalista, ele não se apresentará como tal, isto é, defendendo seu lobby econômico, mas sim como um cristão fervoroso, decidido a transformar o seu país numa fantástica teocracia por meio de propostas de leis biblicamente justificáveis. Paradoxalmente, terá melhores condições de conquistar o apoio alucinado das camadas mais oprimidas pelo poder financeiro.
Se esse mesmo indivíduo expusesse os verdadeiros motivos de sua causa política, confessando previamente os interesses que engrandecem os lucros das instituições privadas, quase não encontraríamos tantos pobres “de direita” confiando votos a ele. Portanto, a estratégia mais eficaz é entusiasmar o povo conforme suas tendências mais simplórias e incoerentes, fazendo-o crer cegamente em tudo o que for dito. As consequências que decorrem disso são perniciosas: qualquer expectativa de uma participação política racional é quase inteiramente destruída, pois a influência religiosa impede a maioria das pessoas de reconhecer sua verdadeira identidade de classe socioeconômica.
Na Câmara dos Deputados, a bancada fundamentalista BBB (Bíblia, Boi e Bala) é a pioneira em pautar discussões em preceitos bíblicos torpes, sem enfatizar nenhuma das especificidades de classe social, como a desigualdade de renda, desemprego, acesso aos serviços básicos e o domínio do poder privado nos deveres públicos. Ou seja, as propostas que de fato deveriam tramitar acabam sendo demonizadas. O povo precisa, além de depositar sua fé na compatibilidade religiosa de seu representante, aceitar, como mero telespectador, todas as intenções “não-religiosas” que ele lhe impuser. Logo, as reformas das quais o Brasil mais precisa serão conduzidas por uma confluência de fé contrária a qualquer debate imparcial baseado em estudos e fatos.
É este o caso da PEC 171/1993, que pretende reduzir a maioridade penal para 16 anos. O Velho Testamento das Sagradas Escrituras é citado para reforçar essa medida: “A alma que pecar, essa morrerá”. Frases descabidas como essa estimulam as tendências mais simplórias e incoerentes do povo; é uma aliança direta com a fragilidade e ignorância popular. Ninguém poderia ser mais responsável por isso do que o atual presidente da casa, o peçonhento Eduardo Cunha (PMDB-RJ), que vem ameaçando abertamente seus opositores com autoritarismo, chantagem e tirania.
Beto Richa (PSDB), reeleito governador do Paraná nas eleições de 2014, não apresentou uma conduta tão diferente do observado entre os integrantes do Congresso Nacional. Em muitas de suas campanhas, Richa se empenhou em angariar o apoio massivo de entidades religiosas: “Farei um governo respeitando os valores cristãos, a ética e as pessoas. As igrejas terão um papel importante no resgate dos valores da família”, disse ele. Após alguns meses de camuflagem, muitos se deram conta de que a causa da greve dos professores, ocorrida Em Curitiba-PR no dia 29 de abril deste ano, nada tem a ver com “valores cristãos”, mas sim com interesses antiquados contidos na PL estadual 252/2015, que alterou o sistema previdenciário dos servidores públicos.
Questiono quantos professores religiosos que o elegeram foram às ruas de Curitiba, decepcionados com a perigosa fusão de fé e política que fizeram. Em troca, acabaram duplamente desmantelados pela repressão militar somada à indesejável aprovação da PL 252/2015, em um dos episódios mais humilhantes que o Brasil já teve. O governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, também aqueceu o esqueleto de sua campanha com o apoio de milhares de religiosos e, inclusive, se coligando ao pouco alfabetizado Valdemiro Santiago, líder da Igreja Mundial do Poder de Deus.
A religião, mais do que uma arma destrutiva para políticas teocráticas, serve também como um permanente disfarce que encobre o lobo em pele de cordeiro. Como quase sempre aconteceu ao longo da história, se as mentes esclarecidas se encolherem, cada vez mais os discursos públicos incentivarão os crentes a decidirem o destino da sociedade inteira.
Vi no: http://www.bulevoador.com.br/2015/05/quando-a-religiao-atrapalha-a-politica/

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