domingo, 1 de março de 2015

Refinando o debate sobre o aborto



Muitas vezes, debates são conduzidos sem a mínima tentativa de entendimento entre os participantes. Esquece-se, por exemplo, que a qualidade de um argumento não é proporcional ao tom de voz emitido, e que um esforço genuíno de compreender o interlocutor é uma maneira eficaz de rever e reforçar os argumentos que temos. E isso acontece de ambos os lados de uma posição.

Tem-se visto muitas pessoas defensoras do direito ao aborto sendo descuidadas com suas posturas. É recorrente encontrar alguém alegando coisas apressadas do tipo “isso não é um argumento” quando se depara com um pessoas defendendo uma posição conservadora. Acontece que em vários casos o argumento existe, e é válido. Algumas pessoas reconhecem a necessidade de manter um debate com mais razão e menos emoção, e para estas este texto não deve trazer muita novidade. Para as demais, proponho alguns alguns exemplos.

Premissa 1: Existe uma moral divina que sustenta que só Deus pode tirar ou dar a vida a um organismo;

Premissa 2: Todo organismo que é concebido por uma gestação humana está submetido a uma moral divina;

Conclusão: Portanto, com exceção de Deus, ninguém pode interromper uma gestação.

Embora a a conclusão se segue das premissas (ou seja, o argumento é válido), o argumento é ruim. E é ruim por pelo menos duas razões: i) as premissas são mais facilmente aceitáveis para quem aceita a conclusão e ii) não é óbvio que exista alguma entidade chamada de Deus, tampouco a chamada moral divina. E mesmo que existam Deus e a moral divina, é defensável que — devido a heterogeneidade de crenças existentes –, nem todas as pessoas entendem que existe algo de essencialmente mágico durante uma concepção humana; assim, não há essencialmente boas razões religiosas que apoiem a existência de uma lei que criminalize a interrupção da gravidez. E até mesmo pessoas que acreditam em Deus e na moral divina estão dispostas a aderir a causa da descriminalização do aborto (vide o movimento “católicas pelo direito de decidir”).

Segue outro exemplo.

Premissa 1: É errado matar um ser humano inocente.

Premissa 2: Um feto humano é um ser humano inocente.

Conclusão: Portanto, é errado matar um feto humano.

Uma possível objeção a este argumento é atacar a premissa 2. Nesse caso, é possível defender a distinção entre feto e embrião. A gravidez acontece em um espaço de tempo no qual mudanças significativas acontecem ao longo dos meses da gestação. O embrião, embora seja um ser vivo, não dispõe das propriedades necessárias para que o qualifiquemos como uma pessoa. Pode-se defender que estas propriedades são autoconsciência, racionalidade e senso de temporalidade. Nesse sentido, pessoas conseguem se projetar no tempo (passado ou futuro) e buscam satisfazer seus desejos. Um embrião falha em exercer essas atividades assim como um fio de cabelo também falharia. Dessa forma, a premissa 2 do argumento supracitado é razoavelmente objetado. Novamente, embora a conclusão se siga das premissas, o argumento pode ser dito ruim porque pelo menos uma de suas premissas não é boa o suficiente para convencer quem pretende-se convencer (os defensores do direito do aborto).

Como se vê, a refutação mais eficaz é atacando as premissas. E a menos eficaz é menosprezar esse esforço quando a preocupação prioritária é trazer pessoas para armar um exército de simpatizantes da causa. A questão, portanto, não é que os antiabortistas não têm argumentos, mas, em sua maior parte, seus argumentos são ruins.

É importante estar vigilante sobre essas coisas. É mais do que apenas um preciosismo de lógica, mas é a garantia para manter um debate respeitoso e intelectualmente honesto.

Cicero Escobar
No Bule Voador

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