domingo, 14 de dezembro de 2014

Jornais desonestos, jornalistas sem decência


Com a palavra, H. L. Mencken, que foi, entre outras coisas em sua vida altamente produtiva, jornalista.

O texto foi escrito na década de 20 do século passado, há quase 100 anos, portanto, e se refere ao jornalismo americano.

Mas parece que foi escrito hoje, descrevendo a miséria da imprensa brasileira. 

Em tal jornal — ou seja, o típico e normal jornal americano — deve ser óbvio que a busca da verdade, de toda a verdade e de nada mais que a verdade é comumente mitigada pela política do jornal. Por um lado, a redação deve produzir um jornal que venda e, para isto, é forçada a manter o público atiçado pelo tradicional sensacionalismo; por outro, precisa tomar cuidado para não pisar nos enormes, numerosos e sensíveis pés do Googan, do Rosehill ou do Snodgrass nos bastidores.
(Quando comecei, os pés eram os de um rico magnata do gelo, e toda reportagem em que ele estivesse interessado — digamos, umas nove ou dez por noite — descia para a composição marcada com a palavra “Gelo!!!”). Não é preciso argumentar muito para convencer os mais judiciosos de que o negócio de moldar a opinião pública sob tais condições tende a relaxar o conceito de verdade na cabeça do jornalista e, por fim, até o seu conceito de honra. 


Empenhado diariamente em maquilar ideias que ele sabe serem falsas e 
idiotas, e forçado a fazer de si mesmo um instrumento de jogadas que às vezes não entende ou considera sinistras, o jornalista acaba por perder toda a noção de responsabilidade pública. Com isto, torna-se um mero cão de guarda, pronto a receber ordens para defender um culpado ou atazanar e perseguir um inocente. No fim, acaba possuído por uma fúria maligna. 

O poder está em suas mãos, e sua consciência se evaporou. Não passa de um homem de oitava classe com a capacidade para o mal de um Napoleão cronicamente investindo às cegas. Esta destruição ordinária da decência normal do jornalista é responsável por muitas das coisas de que o dr. Sinclair [o escritor americano Sinclair Lewis] se queixa em seu livro — a amarga e incansável perseguição às vítimas, o grosseiro desprezo pela honestidade, o total abandono dos hábitos de cortesia e educação prevalecentes entre homens civilizados. Um jornal tão poluído torna-se uma ameaça pública. Sua palavra não vale um níquel. Suas campanhas são maliciosas, burras e covardes, negando o direito de resposta a suas presas. Um apelo à sua honra é tão inútil como um apelo à honra do Congresso.

Tais jornais, como disse, tendem a crescer desordenadamente em número. Houve uma época, digamos uns vinte anos, em que eles ainda eram as exceções; hoje são a regra e, em algumas partes do país, a regra invariável. Não me entendam mal! Não estou protestando contra o mero zelo exagerado — o louvável desejo de um jornalista em agradar o seu patrão. Não estou, na verdade, protestando contra nada. Estou apenas descrevendo algo, e nem mesmo com um lamento, mas simplesmente como um especialista em depravação humana. 

O que quero deixar claro é que tais jornais são completa e deliberadamente desonestos, e que eles divertem ou atormentam o seu público sem a menor consideração pela mais comezinha decência. E quero também deixar claro que eles estão tirando do mercado todas as outras espécies de jornais. Tal jornal, com tanto poder nas mãos, não se importa com o direito dos indivíduos.

Quem cair, vítima de sua mendacidade, dificilmente poderá se recuperar. Sua própria versão do caso será distorcida ou ignorada. Seus defensores ficarão amedrontados. E se, desistindo do fair play, apelar aos tribunais, irá descobrir rapidinho que, em quase todas as grandes cidades americanas, a lei tem um medo santo dos jornais — e que o homem que ganhou uma causa e saiu com o dinheiro é tão raro quanto o homem que mordeu o leão e viveu para contar a história.

Estou ciente de que serei acusado, digamos, de jogar lama sobre minha velha profissão e, em particular, sobre profissionais batalhadores. Mas fatos são fatos. Esta profissão sofreu uma desagradável metamorfose nas últimas décadas. Houve um tempo em que o verdadeiro chefe de quase todos os jornais importantes era um jornalista praticante, que tinha orgulho de seu trabalho e uma honrosa reputação no ramo, pelo menos no local. Para o repórter mais jovem, este sujeito era um ídolo. Suas teorias sobre jornalismo eram ouvidas e citadas, seu estilo era imitado e todo foca na equipe queria seguir suas pegadas. 

Hoje, o verdadeiro chefe de um jornal tende cada vez mais a se tornar uma figura sombria nos bastidores, ignorante das tradições do jornal e do seu modo de pensar, e grosseiramente empenhado em empreitadas que colidem frontalmente com o que resta dos ideais deste jornal. Este homem está além do círculo jornalístico; nenhum jovem repórter sonha em seguir-lhe os passos algum dia; qualquer ambição de ficar como ele significaria abandonar
de vez a profissão. 

A primeira consequência é a de que a profissão em si deixa de ser charmosa; já não é mais uma cooperação romântica entre pessoas livres e iguais, mas uma forma de trabalho parecida com a de uma oficina de laminação, tendo o sindicalismo como a única forma de torná-la suportável. 

A segunda consequência é a de que os homens que, no passado, entraram para a profissão com um alto senso de dignidade resolveram seguir outros rumos, enquanto o típico recruta de hoje é um jovem andrajoso e de oitava categoria, sem mais capacidade para o auto-respeito profissional do que um coletor de lixo. (Extraído de "O Livro dos Insultos")

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