quarta-feira, 23 de maio de 2012

Morte: um fenômeno irritante



“Ei, dor, eu não te escuto mais. Você não me leva a nada”,
Antônio Júlio Nastácia 
“Ah, arrá, o terror vai começar! Uh, vai morrer! Uh, vai morrer!”
Gritos de guerra de torcidas organizadas de futebol 
“Morreu na contramão atrapalhando o sábado”
Chico Buarque 

Por ser ofício invulgar, segurar em alça de caixão, conduzir inanimados definitivos para as catacumbas não deveria jamais se prestar ao regozijo de puxa-sacos e dos baba-ovos. Mas acontece. Eu sei que acontece. Dependendo da importância do defunto, seja ela patrimonial, cultural ou política — principalmente, neste último caso — os aproveitadores de acotovelam para conduzir o pobre diabo pra dentro do buraco. Se pudesse, se o coisa-ruim me acenasse o  seu tridente da escuridão da terra, eu sim os empurraria todos para o vazio da cova.
Sucedeu que o sujeito apagou aos 93 anos de idade, apesar dos cigarros de palha, da aguardente e carne de lata. Viveu pra dedéu e o povo da região garantia: era, sim, um homem de bem. Nasceu, cresceu, casou e procriou na roça, no mesmo casarão antigo em que seu pai e o pai do seu pai também nasceram, viveram e sumiram. Naquelas bandas, nunca se ouviu um só fato que o desabonasse. Ao contrário, era tido e havido como justo e correto, “apesar de namorador e aficionado pela pinga na sua mocidade”. O povão maledicente sempre cavouca, pesquisa ou inventa algum deslize no qual se arvorar para denegrir, nem que seja um pouquinho, a reputação de quem quer que seja. Maldadezinhas básicas. Coisas de ser humano.
Pois bem, acontece que o velho foi pego por uma gripe e terminou adoecendo profundamente. A moléstia evoluiu para uma pneumonia dupla (é assim que se diz vulgarmente quando a infecção atinge ambos os pulmões), que avançou para a tal infecção generalizada. Daí, vocês já sabem: o bicho pega, fica difícil escapulir da senhora da foice.
Atrasado algumas horas, acabei perdendo a hora agá, o dramático último suspiro no leito de morte. O espetáculo gasturento foi testemunhado e chorado pela esposa, com quem permaneceu casado durante quase setenta anos. Na plateia compulsória havia também as filhas. Mulheres, vocês sabem, são mais sensíveis e solidárias que os homens. Não é o que se diz? Na hora da dor, na hora do pega-pra-capá, chamem uma mulher. Pois então. Os inabaláveis senhores da prole oficiavam providências irrelevantes, como vender gado ao frigorífico, trocar os pneus da camioneta e checar os extratos bancários.
Contaram-me que, num esforço terminal, o velho fazendeiro pediu desculpas às filhas, aos filhos, à velha companheira, a todo mundo, enfim, por conta dos mal entendidos, do sofrimento, dos aborrecimentos involuntários ou não que ele pudesse ter provocado àquela gente. Não carecia tomar aquela precaução derradeira, até porque havia um quase nada a se relevar. Ao ouvir o apelo desesperado do moribundo, o núcleo familiar ali presente desabou de vez e chorou sentido, antevendo uma saudade imensurável.
Tratava-se de uma mixuruca cidade interiorana, de tal forma que a única igrejinha local ficou lotada de gente, um verdadeiro alvoroço ao redor do morto. A missa já tinha encerrado e o padre de sotaque esquisito, sem muitas delongas, sem muitos versículos, sem muita paciência com aqueles pobres diabos, como sói ocorre aos padres, abençoou o rebanho e cascou foraem sua Kombirepleta de hóstias: havia ainda um batizado e um casamento na roça naquele mesmo dia.
Era chegada a hora de lacrar a urna. A tampa de jacarandá pesada desceu. O povo curioso chegou mais perto, ficou mais junto. A parentalha debulhou-seem lágrimas. Algunscrentes mais fanáticos despencaram da própria altura, desmaiaram, cederam à histeria, dando show e trabalho adicional ao único doutor médico que atendia naquelas paragens. A esposa velha, senhora octogenária, seca de tanto chorar uma madrugada inteira, encostou a fronte franzida no caixote, a questionar o Bom Deus como é que faria pra seguir vivendo sem a companhia daquele querido.
O baú foi lacrado. Alguém trouxe uma coroa de flores improvisada, vulgar e depositou sobre o recipiente sórdido. Ocorreu então o momento mais emocionante daquele funeral. Seis companheiros, camaradas das antigas (é assim que se diz dos amigos velhos de guerra), pediram licença aos familiares e ao povo que estorvava a passagem. Apesar da musculatura debilitada pela senilidade, cada qual agarrou numa beirada. Olhando assim de longe, a cena era peculiar porque o sexteto primava pela cabeleira branca e bem tosada.
Seis homens velhos, de saúde precária, puxaram o cortejo até o Cemitério Municipal. Foi bonito de ver a multidão dobrando a esquina, com aqueles homenzinhos de cabeça branca espetados de entremeio. Funeral é sempre uma merda, mas aquele foi-me mais didático que o habitual.
É por isto que eu penso: alça de caixão não é instrumento de qualquer um. Que ninguém se ocupe neste ofício só para impressionar ou fazer bonito. Morte não é brinquedo. Morte é dor, saudade, um dos fenômenos naturais mais dramáticos e irritantes ao sempre ignóbil ser humano. Esta crônica é um singelo tributo ao Jairo, meu avô.

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