quinta-feira, 15 de março de 2012

A hipocrisia nossa de cada dia


A história da acumulação primitiva do capital é uma história do coração das trevas — o horror, o horror, o horror. Tanto do ponto de vista humano — vidas são sacrificadas — quanto da corrupção e da violência.
O banqueiro J. P. Morgan acertou quando disse que poderia justificar sua fortuna, mas não seu primeiro milhão. A acumulação primeva é quase sempre brutal.
A fortuna de um poderoso empresário brasileiro, praticamente visto como aristocrata, tem origem na venda de escravos. Naturalmente, sua biografia, hoje exemplar, omite a “mancha” dos negócios do avô.
No filme “O Poderoso Chefão 3”, de F. Ford Coppola, o mafioso Michael Corleone tenta “limpar” seus negócios buscando alianças com empresários e banqueiros legais — inclusive financistas do Banco do Vaticano.
Entretanto, ao se envolver com os homens dos negócios “limpos”, Corleone descobre que seus negócios são tão “limpos” quanto os das organizações criminosas ítalo-americanas. O mafioso tinha uma ideia equivocada do mundo real. O que “mata” Corleone não é apenas uma doença, mas sobretudo a percepção de que sua inteligência prática, o pragmatismo herdado do pai, rico em frases de efeito, o enganara no confronto com o mundo dos homens “normais”.
O filme sugere um elogio da máfia, por causa de certa glamourização. Na verdade, Coppola anuncia, no terceiro filme, a morte da máfia que tentou ser inteiramente “legal”. Devolve, por assim dizer, a máfia ao crime mais banal, à violência. A máfia de smoking não funciona — é o recado dos “mafiólogos” Mario Puzo e Coppola.
Numa frase até grosseira, um filósofo inglês sugeriu: “Quer pureza no mundo real? Então, não vá ao convento”. O fato é: a sociedade quer que todos os negócios sejam limpos? Talvez até queira, mas a vida real corre por linhas tortas, como notou Kant, citado pelo filósofo anglo-letão Isaiah Berlin. Uma sociedade mais “reta” precisa ser mais lenta, menos voltada para o presente consumista e mais para um futuro menos comercial. Entretanto, como notou com perspicácia o instigante Berlin, não há sociedade e homens perfeitos. A tentativa de construí-los acaba por levar não ao paraíso — os marxicidas queriam, sim, construir uma sociedade de iguais, pois eram idealistas —, ou à democracia social, e sim à ditadura.
Mas, sim, de vez em quando precisamos pegar um fruto podre, ou supostamente podre, e jogá-lo “fora”. Aí ficamos com a impressão de que a sociedade melhorou e, portanto, estamos “limpos”. Faz bem à eterna “impureza” do ser. 
revista Bula

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