segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

A religião como agência controladora do comportamento


Há alguns anos atrás, um economista sugeriu-me que as religiões têm o poder de controlar o comportamento humano. Na época, achei a ideia exagerada. Recentemente, reconsiderei-a enquanto lia o clássico Ciência e Comportamento Humano(Skinner, 1953/2003) e, posteriormente, o artigo“Um diálogo entre um Cristão Ortodoxo e um Behaviorista Radical” (Rodrigues & Dittrich, 2007). Em seu livro, B. F. Skinner define as agências controladoras como sistemas sociais organizados que modelam, mantém e extinguem uns ou outros comportamentos. Em outras palavras, agências como o governo, a educação, a religião e a psicoterapia influenciam, ou controlam, em larga escala o que sentimos, pensamos e fazemos.
“Controle” é uma palavra que, no senso comum, está emparelhada a coisas como “poder”, “coerção” e “manipulação”. Aqui, no entanto, o termo assume um sentido mais amplo, tal como comumente usado no meio científico: o da influência que uma variável independente tem sobre uma variável dependente. A título de exemplo, as propriedades químicas do sorvete (variável independente) controlam o que sentimos (variável dependente) ao degustá-lo; o que uma garota nos diz controla o que fazemos posteriormente (se a beijamos ou se nos afastamos); e, para complicar um pouquinho, a fome, a presença dos pais da garota que beijamos e o almoço na mesa controlam, em conjunto (contexto), o que fazemos. Em suma, uma ciência do comportamento deve agarrar o pressuposto do determinismo, e as religiões são inevitavelmente parte do ambiente social que controla o desenvolvimento humano.....

As ferramentas, os conceitos e os princípios utilizados pela Análise do Comportamento, ciência fundamentada no behaviorismo radical, mostram-se apropriados para a abordagem do tema. Contudo, e em função do espaço e da proposta, evitarei o uso da linguagem técnica e trarei um retrato resumido, e talvez superficial, do que tenho lido e pensado a respeito.(1)
O crer e o ter fé são aprendidos
Não nascemos religiosos. A despeito da sugerida “naturalidade da religião”, o crer em divindades ou em “forças superiores” são comportamentos modelados ou arranjados a partir das interações que uma pessoa estabelece com o mundo — sobretudo com o ambiente social. Os pais de uma criança ensinam-na a orar, explicam os acontecimentos mundanos pela perspectiva sobrenaturalista e justificam o “certo” e o “errado”, ou o “bem” e o “mal”, por princípios ou razões transcendentais. O processo de “aprender a ser religioso” envolve a) o estabelecimento de condições reforçadoras(2), como o elogio, o incentivo, o reconhecimento e o afeto, e b) o de condições punitivas, como a censura, a repreensão e o castigo. Em linguagem comum, parentes, conhecidos e líderes religiosos recompensam o seguimento e castigam o descumprimento das práticas religiosas da doutrina da qual fazem parte.
Aprendendo conforme o modelo
O comportamento imitativo é importante para a manutenção de uma cultura. Ao aprendermos a tocar algum instrumento ou a praticar algum esporte, podemos observar e imitar as pessoas proficientes nessas áreas. No âmbito moral, e imersos num mundo social desconhecido, podemos agir e pensar como o fazem os mais velhos. A aprendizagem pela observação é denominada modelação, e é este o processo em que os cristãos se engajam ao tentar inspirar suas ações nas que foram emitidas por Jesus Cristo. Em geral, pais e líderes religiosos podem servir a crianças e jovens como modelos. A observação e a imitação são um atalho para a aquisição de comportamentos individual e socialmente desejáveis e, ao mesmo tempo, para a evitação dos que são passíveis de punição (aprendemos o que não nos convém fazer).
Práticas governadas por regras
Como abordado noutra ocasião, enunciados que descrevem relações entre eventos são denominados regras. Skinner (1953/2003) comenta que a lei de um governo 1) especifica um comportamento e 2) descreve ou dá a entender uma consequência. O fundador do behaviorismo radical assevera que a maior parte do controle exercido pelas agências controladoras se faz por medidas punitivas. No controle exercido pelo governo, que é mediado, entre outras agências, pela polícia e pelos órgãos jurídicos, multas, prisões e trabalhos comunitários são alguns exemplos. Na esfera religiosa, as regras que preconizam certos comportamentos e suas consequências costumam estar dispostas em um livro considerado sagrado. Para os cristãos, os Dez Mandamentos da Bíblia são as regras-chave. Skinner comenta que
o controle que define uma agência religiosa no sentido mais restrito se deriva de uma apregoada conexão com o sobrenatural, através da qual a agência arranja ou altera certas contingências que acarretam boa ou má sorte no futuro imediato, ou bênção eterna ou danação na vida por vir (p. 383).
Nas palavras de Tommaso, o behaviorista que discute com o cristão ortodoxo, “membros da igreja cumprem os mandamentos divinos que outrora foram contingências para o bom convívio em coletividade e para a sobrevivência do grupo [...]” (Rodrigues & Dittrich, 2007). Esses comportamentos acabam sendo codificados em normas ou regras e são, conforme suas consequências, classificados como “bons” ou “maus”, “legais” ou “ilegais”, “morais” ou “imorais” ou “virtuosos” ou “pecaminosos”. O comportamento de um indivíduo que venha a lesar um terceiro — ou o comportamento pecaminoso ou mau — é, pois, repreendido por seus pares. Temos, como consequência, o sentimento de culpa ou de pecado.
Na doutrina cristã, as consequências de longo prazo são notáveis — tanto as boas como as ruins. Conforme o sucesso ou o insucesso no seguimento das regras divinamente concebidas, tem-se, após a morte, uma vida eterna e tranquila no Céu ou, em contraste, uma estadia horrorosamente sofrível no Inferno. Skinner (1953/2003): “A ameaça de perder o Céu e ir para o Inferno faz-se contingente ao comportamento pecaminoso, enquanto o comportamento virtuoso traz uma promessa do Céu ou o alívio da ameaça do Inferno” (p. 385). A observância dos ensinamentos bíblicos e das instruções dos líderes religiosos seriam, assim, um meio de assegurar um amontoado de consequências desejáveis a que teríamos direito após a morte. Como, entretanto, somos mais controlados pelas consequências imediatas (por exemplo, fruir dos efeitos das drogas, trair o cônjuge e roubar) do que pelas tardias, a agência religiosa trata de arranjar meios de reforçar e punir, respectivamente, os comportamentos virtuosos e os pecaminosos.
Dos meios
Arrisco-me a dizer que as pessoas buscam as agências religiosas por estas 1) darem um sentido à vida e 2) fornecerem orientação e apoio acerca dos reveses cotidianos. O primeiro item parece se derivar da angústia gerada pela finitude, isto é, da ideia de que a morte nos imporá um limite. Ao significar o mundo e a existência individual, a agência religiosa fornece meios de remover a estimulação aversiva gerada pela dúvida, pelo desconhecido e pela possível perda daquilo a que nos apegamos. Isso, per se, fortalece comportamentos como a participação em cultos, o orar e o ler as escrituras. Em resumo, o ter fé elimina o sofrimento derivado da dúvida e da ideia de que “tudo é em vão”. O segundo item, por seu turno, abarca tanto a esfera moral como a que envolve o aconselhamento e o apoio. Uma pessoa pode, por exemplo, beneficiar-se da agência religiosa na ocasião de conflitos, quer seja no âmbito interpessoal, quer seja no laboral. O “Como eu devo agir?” ou o “Como eu deveria ter agido?” podem ser respondidos pelas palavras do líder religioso, pelos colegas da comunidade religiosa e, em complemento, pelas escrituras. Daí que o fiel, na medida em que participa de uma doutrina religiosa, encontra um referencial moral.
Se há demanda, resta às agências religiosas entrar em cena. A distribuição em massa de panfletos, a promoção de shows musicais e a transmissão de cultos pela televisão são formas conspícuas de atrair o fiel. No entanto, esses empreendimentos são custosos e requerem, de antemão, o financiamento por parte daqueles que já fazem parte da comunidade em questão. A história do cristianismo é um exemplo de como uma agência religiosa pode se fortalecer ao firmar aliança com o governo (uma superagência), quando ao número de fiéis somou-se a força do dinheiro. Se hoje, menos poderosa que outrora, a igreja católica tradicional sobrevive de doações, há instituições que cobram o dízimo e se enriquecem.
Infiltrar-se na educação é uma estratégia indubitavelmente promissora, porquanto os valores e o saber a serem ensinados podem ser arranjados em favor da agência religiosa. Acontece, contudo, que a agência educacional vem se tornando cada vez mais secularizada, tendo o geocentrismo e — um tanto menos — o criacionismo, por exemplo, entrado em decadência. Mas a educação religiosa formal, como o catecismo e a crisma, ao lado de programas como o Encontro de Casais com Cristo (ECC) e o Encontro de Adolescentes com Cristo (EAC), podem vir a compensar esse déficit.
Ademais, os feriados e as semanas religiosos são ocasiões nas quais uma comunidade pode ganhar em lazer e em atrações culturais. As “festas juninas”, as procissões e as congadas são especialmente apreciadas nos interiores mineiros, e o natal é decerto o feriado religioso mais festejado no mundo (movimentando notavelmente a economia, a propósito). Emparelhados a esses contextos aprazíveis e comoventes, encenações, imagens e luzes, músicas e palavras religiosas fazem-se presentes. Os Retiros de Carnaval, também conhecidos como Carnavais com Cristo, são o melhor exemplo de como é possível colocar juntos, ou emparelhar, o divertimento e a doutrinação — um dos meios mais efetivos de se ensinar.
Um resumo da ópera: através do governo, como ao influenciar a criação e a efetivação de leis, da educação, como ao prescrever o que deve ou não deve ser ensinado, e da economia e da mídia, como ao cobrar o dízimo e ao ser pretexto para o consumo, as agências religiosas podem exercer controle sobre o comportamento humano. Dentro do círculo institucional, a promessa do Céu e a ameaça do Inferno figuram como as razões últimas para o agir, e a significação da vida e o apoio em situações adversas são complementos indispensáveis. Proporcionar lazer e atrações culturais à comunidade é um dos meios de controle mais sutis mas, presumivelmente, não menos poderoso. No cotidiano, muitos religiosos passam a mediaro controle da agência, de vez que não apenas adquirem os padrões comportamentais prescritos pela doutrina, mas os divulgam, os apregoam e, às vezes, os cobram.
Entre os mais efetivamente controlados por uma agência religiosa, estão aqueles que, guiados pela ideia de que “Deus tudo pode e tudo vê”, passam a fugir ou a evitar, por medo do castigo, o comportamento de questionar. Vejamos, para exemplificar, como um fiel, ao mediar o controle da agência religiosa, especifica dois tipos de consequências (uma boa e uma ruim) que seriam produzidas pelo tipo de tratamento dado a uma mensagem eletrônica:(3)
Traduzindo: Se você crê em Deus e repassar a mensagem, algo bom lhe acontecerá. Mas, se não crê e, ainda, não encaminhar a mensagem, coisas ruins lhe aguardarão após a morte.
O contracontrole
Certas práticas religiosas podem ser custosas para os indivíduos e/ou entrar em conflito com comportamentos estimulados por outras agências. Restrições em práticas como o sexo casual ou a masturbação, o uso de bebidas alcoólicas, o comer demasiadamente, o ler livros ou o ver certos filmes e o se vestir vulgarmente podem ser aversivas para o fiel. A mídia, a comunidade virtual e o psicoterapeuta, por exemplo, podem sinalizar consequências aprazíveis em praticá-los. No campo do saber, teorias alternativas para a origem das espécies e para o lugar em que estamos no Universo podem conflituar com o que é postulado pela religião. Diante dessas condições, “o controlado religioso simplesmente pode deixar a esfera de controle da agência, pode questionar a realidade das contingências alegadas [ou] pode atacar a agência estabelecendo uma agência rival” (Skinner, 1953/2003). Atualmente, igrejas de distintas denominações vem competindo pelo número de fiéis. No Brasil e no mundo, aliás, o grupo dos sem-religião (teístas sem orientação religiosa, agnósticos e ateus) está aumentando exponencialmente. Em resumo, a diversidade de doutrinas e o poder distribuído entre as demais agências sociais parecem estar afrouxando as rédeas que prendem os teístas às agências religiosas. O ateu pode ser visto como o supra summus em termos dessa emancipação.
Considerações finais
A noção de que as religiões são agências que controlam o comportamento humano pode parecer maquiavélica à primeira vista. Entretanto, o sistema educacional, o governo, a economia e a psicoterapia são agências igualmente controladoras. Não há nada de intrinsecamente ruim ou errado nisso. Somos expostos a contingências que nos levam aaprender a manusear o dinheiro e a fazer transações monetárias, a respeitar leis governamentais e a votar, a seguir orientações do psicoterapeuta, a ler e a fazer cálculos matemáticos e a orar e a agir como se houvesse entidades sobrenaturais preocupadas com o que fazemos. A agência religiosa, como as demais agências, estabelece meios para modelar e manter certos comportamentos, e nós a mantemos em razão das funções que parece cumprir. Apesar disso, Tommaso assevera que, “diante de uma sociedade livre de sofrimentos, de temores e de insegurança, as práticas religiosas [perderiam] seu sentido” (Rodrigues & Dittrich, 2007). Podemos estar há séculos dessa sociedade, e pode ser que ela jamais venha a existir. Entretanto, o acesso em massa à educação formal, por exemplo, vem figurando como uma das mudanças sociais mais desfavoráveis ao fortalecimento, ou mesmo à manutenção, do controle exercido pelas instituições religiosas.
Somos míopes acerca do que virá, mas podemos, com esforço mútuo, fazer um balanço a respeito dos benefícios e dos malefícios trazidos — direta ou indiretamente — pela agência religiosa. Podemos, ainda, planejar o futuro com base no levantamento desses dados, e quiçá utilizá-los a fim de fundamentar uma mudança no que entendemos por “religião”. Se a agência religiosa é, em certa medida, poderosa até hoje, decerto vem trazendo bens para a sociedade. O problema não é o controle, mas a forma como este é utilizado — e isso serve para as grandes agências e para a relação entre amigos e cônjuges.
Notas
(1) Algumas sugestões e a revisão geral do texto foram feitas pelo meu amigo e analista do comportamento Pedro H. Sampaio.
(2) Eventos ou estímulos reforçadores são aqueles que, quando apresentados, fortalecem ou aumentam a frequência de um comportamento. O orar e o frequentar cultos, por exemplo, podem ser reforçados por elogios e reconhecimento, por coincidências (caracterizando ocomportamento supersticioso) ou por efeitos colaterais como o “sentir-se pertencente a uma comunidade”. Eventos ou estímulos punitivos, por sua vez, são aqueles que enfraquecem ou diminuem a frequência de um comportamento. O castigar, o ameaçar e o repreender verbalmente são exemplos de eventos ou consequências que podem enfraquecer certos comportamentos, como os denominados “pecaminosos”.
(3) Essa é uma das tantas mensagens que recebo mensalmente cujo poder de “disseminação” encontra-se no apelo religioso (ou em ameças e promessas derivadas do sobrenatural). Ela foi-me encaminhada por volta do dia 15 deste mês.
Referências
  • Skinner, B. F. (1953/2003). Ciência e Comportamento Humano. São Paulo: Martins Fontes.
  • Rodrigues, T. S. P., & Dittrich, A. (2007). Um Diálogo entre um Cristão Ortodoxo e um Behaviorista Radical. Psicologia: Ciência e Profissão27(3), 522-537.

no Bule voador

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