sexta-feira, 8 de abril de 2011

Como respeitar a inteligência do leitor

Entre 7/4/2001 e 31/3/2011, o jornal espanhol El País publicou nada menos de 3.085 matérias em que o Brasil é protagonista ou em que é referido, seja por suas políticas públicas, seja por sua cultura, sua economia, seja por seus eventos e também por seus desafios. Publicou editoriais sobre os êxitos do país no campo da mobilidade social, festejou os triunfos de o país ser escolhido para sediar a Copa do Mundo de Futebol de 2014, além de não deixar ao sereno a escolha da cidade do Rio de Janeiro para receber os Jogos Olímpicos de 2016 – batendo não apenas Tóquio e Chicago, mas também Madri. E acompanhou com notável interesse a trajetória política de Luiz Inácio Lula da Silva, em especial nos meses que antecederam sua eleição de presidente do Brasil......
Relativamente novo – surgiu em 4 de maio de 1976, com 180 mil exemplares de tiragem –, El País pode festejar não sua longevidade, sua história em lustrosos números redondos (50, 60, 70, 100, 150 anos), mas, sim, seu apurado faro para a notícia, para dar furos, para levar a sério conceitos basilares do jornalismo, conceitos que em outras publicações – como, infelizmente, em grande parte dos jornais brasileiros – nada mais são que chavões, slogans publicitários, tema de campanha para angariar novos assinantes. Começou, portanto, a circular e a construir sua fama como celeiro de bons jornalistas ao mesmo tempo em que a Espanha fazia sua transição do regime ditatorial para o democrático.
Compromisso pétreo com o leitor
El País vê a si mesmo como "um jornal global, independente, de qualidade e defensor da democracia pluralista". O jornal espanhol se caracteriza pelo grande destaque a informações de âmbito internacional, de cultura e de economia e, obviamente, sobre a Espanha. E não apareceu na cena editorial para ser apenas mais um. Foi além, sendo o primeiro jornal a adotar um Manual de Redação (por eles chamadoLibro de Estilo) e implantou o cargo de Defensor do Leitor – que aqui no Brasil achamos melhor cognominar com uma palavra mais simples e próxima da língua de Camões, ombudsman.
Poderia ficar por aqui, mas é importante destacar que El País aprovou um documento chamado Estatuto da Redação, com a missão de regulamentar as relações profissionais entre a redação, a direção do jornal e também a empresa editorial que o sustenta. Abdicou logo cedo de ser uma ilha editorial para ser fonte e caixa de ressonância de vários continentes ao firmar projetos de colaboração com jornais de prestígio em seus países, como Le Monde (França), La Reppublica (Itália), Süddeutsche Zeitung (Alemanha), The Daily Telegraph (Reino Unido), The International Herald Tribune e The New York Times (EUA).
Mas nem sempre a história de um jornal pode ser construída apenas pela adoção de atitudes e posições consideradas corretas em seu tempo. Alternar sol e chuva, calmaria e tempestade, concede a um jornal o direito de saborear isso que chamamos de fonte de autoridade moral. Com El País não foi diferente.
Pois bem, foi durante a tentativa de golpe de 23 de fevereiro de 1981, levado avante pelo tenente-coronel da Guarda Civil Antonio Tejero, aproveitando a instabilidade política e as incertezas que cercavam o país. Com os tanques do exército nas ruas de Valência e com o governo e todos os membros raptados no Congresso, antes mesmo que a TV espanhola conseguisse divulgar a mensagem do rei Juan Carlos condenando o golpe, El País chegou às ruas com uma edição especial com a manchete "El País com a Constituição". E foi o primeiro jornal a marcar posição pela democracia, convocando a população a seguirem juntos. Tais compromissos com a democracia levaram El País a contribuir para a vitória espetacular do PSOE nas eleições de 1982, oferecendo completo apoio ao governo de Felipe González.
Desde então, o jornal vem conquistando admiradores (não apenas leitores ou assinantes) mundo afora. A forma como faz seu leitor entender que seus compromissos estatutários foram redigidos para serem levados a sério, e que estes não estão no balcão de negócios a conectar a área editorial com a comercial, tem sido clara, muito clara. El País é o jornal que com maior propriedade atualmente pode dizer que tem compromisso pétreo com o leitor, compromisso sagrado e sempre acima das lealdades circunstanciais aos governos de plantão, ao empresariado melhor aquinhoado nas Bolsas de Valores.
Para formar opinião própria
Há que se ter em mente que El País inundou seus títulos e suas manchetes com o nome "Lula" no período eleitoral. El País percebeu, ainda em 2002, que o metalúrgico Lula tinha tudo para ser notícia porque representava um vigoroso contraponto da esquerda em um mundo com forte tendência para a direita. E, é obvio, por ser Lula dono de uma história no mínimo incomum, singular – rara, enfim. Há quem realce também a predileção pela publicação do nome de Lula na imprensa espanhola e na francesa devido à sonoridade que carrega, facilitando rapidamente sua imediata repetição nas chamadas jornalísticas.
El País – e grande parte da vistosa imprensa internacional – cobriu com generosos espaços a vitória de Lula nos dois turnos da eleição presidencial de 2002. Registro aqui algumas das manchetes escolhidas por El País naquele outubro a novembro de 2002 e aproveito para citar manchetes de primeira página do jornal Folha de S.Paulo, nas mesmas datas, de forma que o leitor possa formar sua própria opinião sobre o tema deste artigo:
** 1º de outubro
El País: Lula está a um só ponto de ganhar no 1º. turno no Brasil
Folha de S.Paulo: Dólar cai 3%, mas mercado ganha – FHC alerta para "passo no escuro"
** 3 de outubro
El País: Lula revive seus tempos de líder sindical – Trabalhadores e empresários vestem Lula
Folha de S.Paulo: Lula mantém 49%, Serra vai a 22%
** 4 de outubro
El País: Lula promete manter a autonomia ante os EUA para defender os interesses do Brasil – O guerrilheiro que pôs a gravata em Lula
Folha de S.Paulo: Indústria prevê pior ano desde 99 – Serra é mais atacado que Lula no debate
** 6 de outubro
El País: Lula põe à prova sua nova imagem de moderação – O esquerdista Lula, favorito nas eleições de hoje
Folha de S.Paulo: Garotinho disputa com Serra 2º lugar; Lula segue na frente
** 7 de outubro
El País: Lula conseguiu maioria absoluta
Folha de S.Paulo: Lula X Serra – Projeção aponta segundo turno
** 8 de outubro
El País: Lula: Tivemos a maior vitória de um partido de esquerda na América Latina" e "Lula busca aliança com seus rivais para ganhar no 2º turno do Brasil
Folha de S.Paulo: Oposição sai fortalecida das urnas
** 9 de outubro
El País: A esquerda de Lula ganhou em 24 dos 27 estados do Brasil
Folha de S.Paulo: Eleitor troca 47% dos deputados
Concisão e faro jornalístico
Acredito que foi uma amostragem significativa do quanto a palavra Lula abriu a maioria das manchetes – tenhamos em conta que estas foram publicadas antes, durante ou depois do primeiro turno. No segundo turno de 2002, El País enveredou pelo mesmo caminho. Estas são algumas das principais manchetes dos dois jornais:
** 28 de outubro
El País: Lula arrasa com 61,2% dos votos
Folha de S.Paulo: Lula Presidente – Metalúrgico é o primeiro líder de esquerda a ser eleito no país
** 3 de novembro
El País: O que Lula tem que fazer
Folha de S.Paulo: Dívida infla investimento no Brasil
** 8 de novembro
El País: Lula, outro Allende?
Folha de S.Paulo: Pacto começa com crítica à falta de agenda e elogios
** 9 de novembro
El País: Lula anuncia pacto nacional contra a pobreza, a inflação e a corrupção
Folha de S.Paulo: Bush vence e ONU ameaça Iraque
O encadeamento cronológico das manchetes de El País conta uma história com início, meio e fim. As próprias manchetes são exemplos de concisão e faro jornalístico. Algumas colocam em apenas três palavras parte da angústia de quem analisa o processo democrático na América Latina: "Lula, outro Allende?"
Ridicularizando presidentes
O jornal espanhol é, certamente, o melhor jornal a escrever sobre o Brasil. E qualquer estudante de Jornalismo que se proponha pesquisar o olhar da imprensa sobre o Brasil no período 2003/2010 não poderá, em hipótese alguma, deixar de pesquisar os arquivos de El País. É que o periódico espanhol, beneficiado com olhar de quem se encontra longe geograficamente mas próximo jornalisticamente, conseguiu publicar extensas reportagens sobre o Brasil com regularidade, se não diária ao menos semanal e ao longo de período – em termos jornalísticos – tão longo.
Por outro lado é curioso (a palavra que achei!) notar que a recíproca não é verdadeira: a imprensa brasileira dificilmente encontra algum valor-notícia em que o presidente do governo espanhol, José Luiz Rodrigues Zapatero, esteja envolvido. Não obstante seu, vamos dizer, ostracismo na imprensa brasileira, é fato que Zapatero tomou medidas bastante impactantes não apenas para a sociedade espanhola mas também para a cena internacional: deu início ao "processo de paz com o ETA", autorizou a retirada das tropas espanholas do Iraque, enviou tropas ao Afeganistão, promoveu a articulação pela formação da "Aliança de Civilizações", procedeu a legalização do matrimônio entre homossexuais, aprovou a lei "antitabaco", propôs uma nova regulamentação para os imigrantes e fez a reforma de "Estatutos de Autonomia", como o a Catalunha.
A invisibilidade de Zapatero deve-se ao fato de que para nossa grande imprensa notícia mesmo é o que tem os Estados Unidos como protagonista, seu presidente (sejam os anteriores, Bush pai e Bush filho, seja Barack Obama), suas ações de governo em geral. China, França e Reino Unido também estão sempre nas graças de nossas editorias internacionais. A Argentina entra pela porta da cozinha porque é nosso principal vizinho geográfico. A Venezuela e a Bolívia frequentam nosso noticiário pelo viés de que, se há de ridicularizar alguém, por que não presidentes como o coronel Hugo Chávez e o ex-cocaleiro Evo Morales?
O melhor jornal da atualidade
Ah... e tem o Irã. O país persa só passou a ser pautado quando caiu nas graças do Itamaraty, Lula visitou Teerã e Ahmadinejad visitou Brasília. Historicamente um país dado a violar os direitos humanos de suas minorias – como é o caso dos 300 mil bahá’ís que lá vivem –, a imprensa pauta o Irã apenas como forma de espinafrar a política brasileira para relações exteriores adotada desde 2003.
O grau de independência conquistado por El País é também temido pelo país dos aiatolás iranianos. É que em 31 de dezembro de 2010 o Irã bloqueou o acesso à página na internet de El País. Motivo? El País reproduziu no dia anterior (30/12) um telegrama da embaixada dos Estados Unidos no Azerbaijão, datado de 11 de fevereiro de 2010 e divulgado pelo WikiLeaks, no qual o diplomata Rob Garverick dá conta de contatos com uma fonte iraniana, cuja identidade é protegida. O telegrama informa que o chefe dos Guardas da Revolução, Mohamed Ali Jafari, deu uma bofetada em Ahmadinejad depois de uma discussão "quente" no Conselho Supremo de Segurança Nacional, em janeiro de 2010, sobre como lidar com os protestos que se seguiram às polêmicas eleições de junho de 2009. Durante a reunião, segundo o relato da fonte iraniana, Ahmadinejad surpreendeu os outros membros do Conselho ao assumir "uma posição surpreendentemente liberal", afirmando que "as pessoas sentem-se sufocadas" e defendendo que a solução para reduzir a tensão podia passar por conceder mais liberdades, "incluindo mais liberdade de imprensa".
Não nos consta nem aqui nem alhures que o site de jornal brasileiro tenha sido honrado com o bloqueio ao acesso de suas páginas por parte do ditador iraniano. Mas o do El País foi.
Há muito deixei de ser mero leitor do jornal espanhol. Hoje sou mais que isso, sou admirador do jornalismo ali praticado. Vasculho suas páginas sempre predisposto a encontrar ótimos textos, excelentes artigos de opinião, boa diagramação, notável acervo fotográfico. O que me conquistou não foi, com absoluta certeza, quaisquer de suas campanhas publicitárias. Foi esse sentimento de ter em mãos e ao alcance dos olhos um jornal que respeita a inteligência do leitor, que se abstém das questiúnculas e das miudezas da política cada vez mais paroquial levada às folhas de nossos principais jornais (e revistas semanais) que me fez referi-lo como o melhor jornal da atualidade.
Bom mesmo será o dia em que tivermos acesso diário a uma caprichada edição em português de El País. Enquanto isso... contentemo-nos com o que temos: uma vista d’olhos e não mais que isso e já passamos a ter a impressão de que lemos o jornal pelo período de toda uma semana.
Washington Araújo
By: Observatório da Imprensa

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