quarta-feira, 9 de novembro de 2016

"A esquerda brasileira fala para si mesma, sem uma real conexão com a sociedade"



Por Patricia Fachin                                                                                                                                          
Do Ihu-Online                                                                                                                                  
A esquerda brasileira parece estar numa “bolha” e, em geral, suas discussões “giram em torno” de saber quem estará no comando nos próximos anos, “se haverá uma renovação dentro do Partido dos Trabalhadores (PT), se será criado um novo partido, ou se o Partido Socialismo e Liberdade (Psol) vai crescer. Mas todas essas discussões dão a impressão de serem cada vez mais marginalizadas, (...) sem conexão com a classe trabalhadora”, “sem uma real conexão com a sociedade”, constata o antropólogo argentino Salvador Andrés Schavelzon.
Na entrevista a seguir, concedida pessoalmente à IHU On-Line, quando esteve no Instituto Humanitas Unisinos – (IHU), participando do Ciclos de Estudos Metrópoles, Políticas Públicas e Tecnologias de Governo. Territórios, governamento da vida e o comum, Schavelzon comentou o resultado das eleições municipais no país. Na avaliação dele, “o fenômeno importante dessas eleições” é o fato de que “as maiorias e as classes populares subalternas ou votam na direita ou não votam”, o que confirma a tese de que a esquerda, cada vez mais, “é uma expressão da classe média progressista”.
Segundo Schavelzon, apesar de todas as críticas que podem ser dirigidas ao governo Temer, especialmente por conta da PEC 241, “infelizmente não conseguimos falar de 2015 como um momento totalmente diferente do que o momento que estamos vivendo agora”. E adverte: “Para entender as políticas conservadoras atuais, não podemos começar a discutir 2016 como a chegada de um momento totalmente novo. É interessante nos perguntarmos por que a esquerda fez as escolhas que fez e chegou a esse momento”. E dispara: “Se a esquerda pensa que não existem mais possibilidades, ela pode voltar para casa”.
A proposta da Reforma da Previdência, que sugere o aumento da idade mínima para a aposentadoria, diz, “é do governo Dilma” e a “desvinculação da obrigação de um gasto social - que aparece também na PEC 241 - já tinha antecedentes no governo Dilma. Então, a polarização, que em tempo de eleições e também no processo de impeachment ficou em primeiro plano, esconde um consenso e uma transversalidade entre os governos, porque, evidentemente, a prioridade do (PT) não foi colocar um antagonismo entre trabalho e capital no primeiro plano”.
Para ele, uma alternativa à política atual não será encontrada “dentro do sistema político” e também “não está entre os intelectuais à esquerda ou no progressismo de classe média”. Para encontrar uma saída, frisa, “é preciso que os setores e as maiorias que hoje não estão participando da política, participem; essa é a possibilidade”. E comenta: “Hoje eu vejo que encontramos potência e vida nessas lutas urbanas e nas lutas que não são divulgadas, como a luta contra o desenvolvimento nos territórios, a luta dos povos indígenas que estão resistindo à ocupação de territórios pelo agronegócio”.
Salvador Schavelzon é argentino e atualmente leciona na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). É doutor em Antropologia Social pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mestre em Sociologia e Antropologia pela (UFRJ) e graduado em Ciências Antropológicas pela Universidad de Buenos Aires (UBA). Sua tese de doutorado, intitulada A Assembleia Constituinte da Bolívia: Etnografia de um Estado Plurinacional, foi publicada como livro na Bolívia em 2012, com nova versão editada em 2013, pela Clacso Coediciones. Este livro e outro, sobre Bem Viver e Plurinacionalidade na Bolívia e Equador, estão disponíveis aqui
Schavelzon esteve no Instituto Humanitas Unisinos (IHU), no dia 31-10-2016, participando da quarta edição do Ciclos de Estudos Metrópoles, Políticas Públicas e Tecnologias de Governo. Territórios, governamento da vida e o comum, oportunidade em que proferiu a palestra Cosmopolítica indígena, estados plurinacionais e partidos movimento. Assista à palestra, na íntegra, ao final da entrevista.
Confira a entrevista.
Como interpreta o resultado das eleições municipais no país como um todo? Qual é o significado e o impacto político dessas eleições para a esquerda em geral?
 Salvador Schavelzon - O resultado geral das eleições confirma um avanço conservador e uma fraqueza da esquerda, uma crise de todas as esquerdas. Junto com o avanço conservador, existem disputas das quais a esquerda não participa mais, além disso na esquerda ainda está se decidindo quem irá comandar essa nova fase de administração do capitalismo brasileiro. Nesse cenário, tudo pode acontecer, desde uma força nova aparecer, até forças antigas se reorganizarem. Vemos uma disputa muito forte, por exemplo, dentro do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), entre Aécio, Serra e Alckmin. Lamentavelmente, hoje, essas são as disputas que dizem respeito a quem irá comandar o poder.
A esquerda na sua bolha
Na esquerda há uma situação de “bolha”. As discussões giram em torno de quem comandará a esquerda: se haverá uma renovação dentro do Partido dos Trabalhadores (PT), se será criado um novo partido, ou se o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) vai crescer. Mas todas essas discussões dão a impressão de serem cada vez mais marginalizadas, feitas em uma “bolha”, sem conexão com a classe trabalhadora.
As maiorias e as classes populares subalternas ou votam na direita ou não votam; esse é um fenômeno importante dessas eleições. Cada vez mais a esquerda é uma expressão da classe média progressista. Sem dúvida, em algum momento, a esquerda recebeu o voto da classe trabalhadora, mas hoje esse voto está reduzido. E nesse sentido a esquerda como um todo está reduzida também em termos de linguagem, imaginário, discurso e projeto. É também nesse sentido que existe uma bolha: não é apenas que os pobres não votam mais na esquerda; a esquerda fala para si mesma.
 Por que a classe trabalhadora mudou seu voto e passou a votar na direita? Isso se deve ao fato de a esquerda somente falar para si mesma ou há outros fatores envolvidos?
"O voto conservador já pode ser constatado em discursos conservadores que apareciam dentro do progressismo" 
  
Há várias questões. Ao analisarmos os 10 anos de governo do PT, não podemos dizer, simplesmente, que os trabalhadores estão votando na esquerda, porque votar no PT era votar em uma identidade política de esquerda, mas não em políticas à esquerda. De alguma forma, o voto conservador já pode ser constatado em discursos conservadores que apareciam dentro do progressismo; isso aconteceu em toda a América Latina. 
O PT foi um voto conservador e não progressista?
 Sim. Quando o discurso do PT, por exemplo, não falava de desigualdade, mas do sucesso do consumo, da ampliação da classe média, ou quando o discurso defendia posições nacionalistas e era contra qualquer tentativa de mudança mais radical, ou quando não se discutia o problema tributário, de quem paga imposto no país, quando se possibilitou que os ricos, os setores bancários e os empresários fossem mais beneficiados do que nunca, não estava se fazendo um governo de fato de esquerda. Além disso, políticas progressistas que, na verdade, são políticas sociais, que em outros lugares do mundo fazem parte de um horizonte de bem-são -estar, não é a marca da esquerda, mas de um senso comum do básico do que tem que ter uma sociedade. Então, quando o eleitor deixa de votar no PT e vota em outro candidato porque esse fez uma campanha que o seduziu mais, ele não está fazendo uma opção que mudará transcendentalmente alguma coisa em relação ao voto anterior; esse eleitor já estava votando com base no marketing político. E o PT decidiu jogar o jogo do marketing político e não o jogo que envolvesse a mobilização da sociedade.
A esquerda e o jogo de palavras vazias 
A sociedade confirmou, depois de 2014, que a eleição da Dilma foi apenas um jogo de palavras vazias, apenas discursos, porque na sequência da sua posse ela adotou o caminho das políticas de austeridade, dos ajustes e dos cortes, que é o que continuamos vendo hoje. Infelizmente não conseguimos falar de 2015 como um momento totalmente diferente do que o momento que estamos vivendo agora. Então, seria injusto criticar a opção dos mais pobres, dizendo que eles “viraram a casaca” e foram convencidos, só agora, pela grande mídia. Alguns explicam que a derrota do Freixo no Rio de Janeiroestá relacionada à ignorância dos pobres, à colonização dos pastores, como se um ano atrás essas mentes tivessem sido a da emancipação e a da construção de um projeto alternativo.
Para entender as políticas conservadoras atuais, não podemos começar a discutir 2016 como a chegada de um momento totalmente novo. É interessante nos perguntarmos por que a esquerda fez as escolhas que fez e chegou a esse momento.
 O PT teve oportunidade de adotar outro programa? Muitos defensores do PT alegam que o partido não conseguiu governar de fato.
 Sim. O PTpoderia ter tido outras opções na década de 1990, outras opções em 2003 e outras opções em
"Se a esquerda pensa que não existem mais possibilidades, ela pode voltar para casa" 
  
2014/2015. É verdade que o presidencialismo de coalizão exige alianças; isso é um fato. Esse tipo de aliança exige comprar parlamentares – como foi o Mensalão – ou fazer um pacto. Não sei se essas duas escolhas se excluem, mas se a esquerda pensa que não existem mais possibilidades, ela pode voltar para casa. Essa proximidade e essa abertura para os lobbiesempresariais e para os mercados liberais é uma escolha deliberada que priorizou a estabilidade econômica e a própria manutenção da esquerda na máquina do poder. Veja que quase metade do gabinete do Temer é composta por ministros que participaram do governo Dilma ou do governo Lula ou da base parlamentar.
Na questão das alianças, sem dúvida, poderia ter havido outro caminho. O lugar do empresariado no projeto de país também poderia ter sido outro. Além disso, na questão econômica o PT poderia ter agido de modo diferente. Mas por ser de esquerda, parece que esses governos acham que têm que fazer políticas mais à direita, senão haverá instabilidade em relação aos juros e ao setor bancário. Não apenas o governo Lula, mas quando Dilma ganhou a eleição com apoio da população, era possível, sim, fazer ajustes direcionados ao setor que mais ganha, e não aos setores que atingem os trabalhadores, a saúde e a educação.
 Os governos do PT avançaram na questão do acesso à educação e ao sistema previdenciário?
A Reforma da Previdência sugerida no governo Lula foi o que criou o afastamento de parte da esquerda e que deu origem ao PSOL, por conta justamente do que o PT entregava aos mercados para mostrar que conseguia ser um administrador que não entrava em conflito com o capital. A proposta de uma Reforma da Previdência que sugere, inclusive, aumentar a idade para a aposentadoria, é do governo Dilma. A desvinculação da obrigação de um gasto social - que aparece também na PEC 241 - já tinha antecedentes no governo Dilma, e o próprio Meirelles, que é ministro do Temer, foi uma escolha do Lula. Então, a polarização, que em tempos de eleições e também no processo de impeachment ficou em primeiro plano, esconde um consenso e uma transversalidade entre os governos, porque, evidentemente, a prioridade do PT não foi colocar um antagonismo entre trabalho e capital no primeiro plano.
As políticas do progressismo
A educação é a área na qual o PT avançou e são as políticas desenvolvidas na área da educação que hoje o sustentam como um progressismo, porque de fato houve expansão universitária, políticas de cotas etc. No Brasil esse tipo de política é considerado um programa de esquerda, mas se analisarmos essas políticas em relação ao resto do mundo, isso é o que qualquer capitalismo faz. No Brasil é como se tudo estivesse sido invertido: os liberais são escravocratas racistas e a esquerda é socialdemocrata e promotora do estado de bem-estar social. Mas, de todo modo, esse progressismo em relação à educação não significa que houve uma revolução educativa. Analisando o detalhe das políticas, por exemplo, vemos que houve uma forma de financiamento para a educação, sem mudar a estrutura.
Eu sou argentino e sempre pensei se não seria possível, no Brasil - que tem um orçamento em educação maior do que o da Argentina e universidades com menos alunos -, garantir o acesso à universidade sem vestibular. Mas essa é uma questão que não é discutida pela esquerda brasileira. Em São Paulo, e imagino que nas grandes cidades em geral, a educação básica oferecida pela educação pública não é de boa qualidade, se comparada com a de outros países. Por conta disso, parte do salário da classe média é gasto em serviços de educação e saúde. E, também, quando pensamos nas prioridades, no salário dos professores, por exemplo, não temos um momento anterior, o qual podemos olhar com nostalgia. De todo modo, também seria injusto criticar o PT por conta disso, porque esse é um problema estrutural do país.
Podemos dizer que o PT não fez o suficiente e não teve a educação como uma prioridade de governo. Ao contrário, a lógica principal foi a de que a economia e o capitalismo têm que funcionar bem e que depois isso chegará aos outros setores.
Junho de 2013 : um alerta
Nesse ponto é importante falar em junho de 2013 como um alerta. Junho poderia ter sido um momento de ouvir as ruas, de pensar quais são as prioridades. À época houve uma reação rápida do governo em dizer que seria feito um novo pacto, que iriam mudar a política, a educação, que os recursos do petróleo iriam para educação, mas isso não aconteceu. Alguns criticam junho como causa do impeachment, mas eu vejo junho como um momento que poderia ter sido de rearticulação. No entanto, não sei se o PT teria capacidade de se rearticular; provavelmente não. Provavelmente estamos assistindo a um final inexorável, de alguma forma.
Na política brasileira, junho de 2013 é um momento em que foi dito de forma clara: as pessoas não querem estádios de 800 milhões de reais; não precisam de estádio em quase todas as capitais; não precisam de Belo Monte, que inclusive agora está se evidenciando como um cálculo totalmente equivocado e direcionado ao lucro de alguns setores beneficiados. Mas quais são as prioridades? Educação não foi uma prioridade. O Bolsa Família, que podemos ver como um dos maiores programas sociais do mundo, não representa nem 10% do que custou Belo Monte.
 Em que você vislumbra que possa estar uma potência de mudança no atual contexto?
 Não está dentro do sistema político atual, não está entre os intelectuais à esquerda ou no progressismo de classe média. Eu não pensaria como parte da esquerda pensa - e está fazendo isso bem rápido -, em quem será o candidato em 2018, ou em como rearticular e renovar os partidos, por exemplo, como se a direção do PT mudasse e com isso seria possível mudar a situação. Ao contrário, é preciso que os setores e as maiorias que hoje não estão participando da política, participem; essa é a possibilidade. As formas da esquerda de pensar a politização, a conscientização e a direção das classes trabalhadoras não são mais ferramentas que servem para pensar esse problema.
A crise de Imaginário
  "A esquerda, sem dúvida, está em uma crise de imaginário" 
  
A esquerda, sem dúvida, está em uma crise de imaginário. Mas não se trata de resolver a crise do imaginário e, com isso, pensar que a classe trabalhadora virá atrás. Ao contrário, é um problema de como os que não estão participando possam passar a participar. Então, no que se refere ao sistema político, eu olharia para baixo e não para cima, olharia para as lutas nas cidades: secundaristas ocuparam mais escolas no Brasil do que no Chile à época da revolta e das mobilizações estudantis que circularam o mundo. No entanto, no Chile, elegeram estudantes como deputados, geraram uma reforma educativa. Mesmo que criticável, essa foi uma resposta a essa mobilização. No Brasil, as ocupações não são divulgadas na grande imprensa, nem na imprensa conservadora ou de centro e centro-direita, nem, por exemplo, nos blogs progressistas.
Os secundaristas
É verdade que a esquerda que saiu do poder pode até se aproximar discursivamente dos secundaristas, porque as estruturas estudantis também são vinculadas à esquerdamais tradicional. Mas essas novas gerações têm uma visão – pela idade – de como a esquerda tradicional também acabou sendo engolida pelo sistema. E eles têm uma composição social mais transversal do que, por exemplo, setores que saíram às ruas contra o impeachment. Então, a força da mobilização espontânea da ocupação de escolascontrasta com essa rigidez da política e das estruturas de esquerda.
Hoje eu vejo vida nos secundaristas, não no sentido de que eles vão nos salvar e vão criar partidos, se candidatar e ser eleitos. Ao contrário, existem outras formas de participar politicamente, formas de contrapoder, de autogestão, inclusive porque nos partidos também existe uma crise. Hoje eu vejo que encontramos potência e vida nessas lutas urbanas e nas lutas que não são divulgadas, como a luta contra o desenvolvimento nos territórios, a luta dos povos indígenas que estão resistindo à ocupação de territórios pelo agronegócio. Isso é um front importante para pensar como um país se reorganiza sem precisar optar pelo caminho do desenvolvimento capitalista tradicional. Mas é muito difícil, nos territórios, pensar uma resistência, porque todos os poderes – político, empresarial e judiciário – estão criando uma situação para que o petróleo, a energia e o agronegócio se expandam contra outras formas de vida, contra as populações tradicionais.
 Então você diverge da opinião de que é preciso haver uma rearticulação dos partidos de esquerda com os movimentos? O que seria necessário, no seu entendimento, é um avanço de mobilizações sociais e de outras formas de fazer política, sem depender dos partidos?
Partidos e movimentos podem se rearticular, mas o que vejo é que alguns partidos estão desesperados para voltar a ocupar espaços sociais, por isso se aproximam de movimentos. E existem movimentos que também buscam uma saída institucional, mas isso acontece dentro do microcosmo da esquerda, sem uma real conexão com a sociedade. Então, não é que eu seja contra qualquer rearticulação, ao contrário, é possível que em algum momento a sociedade mobilizada decida participar das instituições, mas hoje partidos e movimentos estão desconectados. A prioridade é como reativar essa conexão, ou seja, como as lutas se conectam com a realidade das pessoas.
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 A pauta da educação, por exemplo, levantada pelos secundaristas, é amplamente apoiada pelo discurso da esquerda, mas a pauta dos povos tradicionais não é unanimidade entre os setores de esquerda. Como você analisa esses conflitos internos dentro da própria esquerda em relação ao que é considerado relevante ou não no seu escopo de atuação?
 Sim, a esquerda brasileira, em grande parte, é desenvolvimentista também, ou reconhece que tem que ter um cuidado com a ecologia, como se fosse possível, ao mesmo tempo, optar pelo desenvolvimento e manter o cuidado da natureza. Mas isso é feito só na enunciação, porque quando a esquerda governa, só tem como prioridade a economia, e não o cuidado.
 A perspectiva indígena do bem-viver seria uma saída ao modelo desenvolvimentista? Como você imagina que esse modelo poderia ser aplicado à nossa sociedade hoje?
 Só faz sentido o bem-viver se ele, antes de ser um modelo e uma solução, circula e faz sentido para quem ele foi pensado, para quem está trabalhando no campo, para quem está sendo “atropelado” pelo desenvolvimento. O bem-viver foi o caminho adotado na região dos Andes. Nos Andes, sociedades, comunidades e povoados que assistiram ao fracasso dos projetos de desenvolvimento da cooperação internacional e do Estado pensaram em uma alternativa, que depois entrou nas novas constituições da Bolívia e do Equador. Mais tarde, os Estados da Bolívia e do Equador também trabalharam o bem-viver como uma possibilidade. No entanto, já ocorreram curtos-circuitos em relação ao modo como o Estado possibilita o bem-viver quando, ao mesmo tempo, quer industrializar e explorar petróleo.
Então, se o bem-viver for uma proposta para o Estado adotar, para ser votada no parlamento, não funcionaria, como aconteceu na Venezuela, onde algumas políticas levam o nome do bem-viver, são inspiradas nos países andinos, mas, por exemplo, é dado um cartão de crédito para as pessoas poderem fazer compras no supermercado com preços mais baixos. Às vezes, a política fica muito na enunciação, tem uma renovação que é feita apenas no discurso, e não há uma mudança de projeto político, de horizonte. Mas o bem-viver discutido nas dezenas de milhares de famílias assentadas do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), que tem uma predisposição para pensar alternativas ao agronegócio a partir da agroecologia e da produção familiar, faria sentido, sim - não sei se com essa palavra, mas algo que fosse pensado de baixo e não de cima.
Essa é uma discussão que não precisa ser feita apenas pelos povos indígenas, por exemplo. Na Bolívia e no Equador, essa é uma discussão que entrou nas cidades, pois o bem-viver não é uma questão apenas do campo e da sociedade tradicional; é um conceito que pode servir para nossas vidas também. Se pensarmos outros tipos de lutas urbanas, da organização da cidade, das áreas comuns das cidades, tem muito para ser trabalhado.
A partir das lutas urbanas e do surgimento de novos movimentos, como você vê a experiência dos partidos-movimentos como, por exemplo, o Podemos, na Espanha?
De fato, o que aconteceu na Espanha surge a partir de um olhar para a América Latina, e depois realimenta processos na América Latina. No Chile, parte do autonomismo já está participando das eleições municipais e ganhou a eleição em Val Paraíso, e no Peru existe a Frente Ampla.
É interessante pensar o municipalismo como uma discussão interna desses processos, no sentido de que na hora de criar uma ferramenta política nova, se abrem duas possibilidades. A ideia de partido-movimento faz sentido como política que se conecta com o território, seja a partir de círculos de vizinhos ou de movimentos territoriais e organizações sociais. É de lá que pode ser pensada uma forma de partido que não seja totalmente um partido, com quadros verticais, mas que seja uma ferramenta de expressão de outras políticas – políticas pela vida, políticas que possam gerir o território a partir da ideia do bem comum –, e de lá é possível chegar às instituições e repensá-las. O outro caminho, que alguns veem como atalho, mas que na Espanha se mostrou como um caminho para que surgisse uma alternativa com muita energia social vinda das ruas, com o 15M de 2011, são os partidos-movimentos. Eles passam a se incorporar ao sistema, como se fossem “o pé esquerdo” sempre necessário para que o sistema não seja tão exageradamente e tão evidentemente “do mal”. Essa possibilidade de energia pode mobilizar o surgimento de novos gestores, que talvez tenham um discurso novo, porque são mais jovens. As pessoas e principalmente os jovens têm uma empatia por esses novos líderes porque eles são culturalmente diferentes, gostam de outros tipos de filmes, não usam gravatas etc.
Mas mesmo assim houve um esvaziamento do Podemos, tanto que eles não venceram a última eleição. Como você explica e entende esse esvaziamento?
 Nesse movimento, o que importa é essa transformação da energia em um aparelho de abstração política profissional. Necessariamente, ele funciona esvaziando, funciona como um partido com votantes. O desafio é que os partidos, mesmo pensando os desafios de governo, mantenham essa vida. O que tem ocorrido, mesmo com tensões, é que esses novos movimentos se esvaziam quando a energia é apenas direcionada para um discurso, ou para a figura de um líder, ou para a participação no parlamento, e, com isso tudo, o corpo do movimento desaparece.
Mas mesmo em lugares como a Bolívia, onde a chegada ao Estado se dá a partir de estruturas de movimentos sociais, que são camponeses, os mais pobres de fato, acontece um processo parecido. O progressismo latino-americano funcionou em uma chave muito vertical e muito dependente de uma cúpula fechada, de uma liderança. Por exemplo, o Evo Morales era uma pessoa do povo, era um dos milhões – “todos somos Evo”, falavam os indígenas que votavam no Movimento para o Socialismo (MAS). No entanto, hoje Evo é diferente da maioria dos indígenas. Mas, sem que isso vire uma crítica à pessoa do Evo, o desafio seria pensar um partido com milhares de Evos também, porque agora, inclusive, ganhou o voto do “não” à reeleição do presidente. Na Bolívia, por exemplo, existe uma crise, a qual os movimentos do MAS falam que darão um jeito, porque eles precisam do Evo.
De fato, vemos também na Venezuela a dificuldade de pensar uma sucessão. Esse é um desafio, mas é um desafio dessa esquerda que prioriza muito o Estado e as formas verticais. Mas essa mesma esquerda tem um problema depois para dar continuidade a esse modelo. Esse é o problema de Dilma não ser o Lula, e de Maduro não ser o Chávez. 

Você acompanha a situação da Venezuela? Como se chegou à situação em que está?
 Na Venezuela existem mobilizações a favor e contra o governo. O país vive uma crise econômica vinculada ao preço do petróleo, portanto, trata-se de uma crise que qualquer presidente teria. Mas no caso da Venezuela, todos têm muito claro que a economia focada apenas no petróleo é muito arriscada e abre as portas para crises desse tipo. Além disso, existem os casos de corrupção e outras questões que a esquerda não têm discutido muito bem. É verdade que a corrupção é o que a direitausa contra a esquerda, e há assimetrias no tratamento da corrupção envolvendo a esquerda e no tratamento da corrupção envolvendo a direita, mas isso não pode fazer com que a esquerda não discuta a corrupção como uma bandeira que é de esquerda; essa era uma bandeira do progressismo e virou uma bandeira da direita.
Um Estado pai sem dinheiro
O modelo político da Venezuela tem a ver com uma ideia de “Estado pai”. Um “Estado pai”, sem dinheiro para ser pai, entra em crise. Nesse sentido, o interessante da Venezuela e do processo venezuelano é a tentativa de criar um poder de baixo também, como as Comunas, mas eu não acompanhei de perto até que ponto dali pode surgir algo pós-Maduro. O governo Maduro é muito frágil e ninguém espera que dele saia uma alternativa. Nas Comunas é possível pensar em um projeto que, mesmo fora do poder, consiga ir além do que era a visão do próprio Chávez, de um estado de bem-estarfinanciado pelo petróleo.
Também assustam, às vezes, reações militaristas que surgem de dentro do chavismo, em uma combinação de coronéis, de poder real do Estado, e uma visão muito fechada a reconhecer que existem problemas que estão para além do ataque do imperialismo, por exemplo. Claro que a direita venezuelana já está lutando para dizer quem que vai comandar as próximas eleições – parece que existem cinco possíveis candidatos. Da direita é certo que não virá uma solução pensando no bem comum.
Ouve-se muito, nesses tempos, em todos os países, que frente à restauração da direita tradicional ou de presidentes conservadores é necessário fazer uma frente e, de alguma forma, postergar as discussões do que aconteceu nos últimos 10 anos. Ouvi mais de uma vez esta pergunta: “Qual é o sentido hoje de criticar a esquerda?”. Mas é importante o que falávamos no começo da entrevista: a esquerda ou a direita não pode ser apenas uma identidade partidária ou ideológica. Se a esquerda faz Belo Monte, se o modelo de desenvolvimento da esquerda e da direita é parecido, se a repressão contra manifestantes – como a Lei Antiterrorista – ou contra povos indígenas é igual no Peru, na Colômbia, no México e na Bolívia, discutir o progressismo é discutir a direita também, ou seja, é discutir como a direita nasceu das experiências do progressismo no poder.
Como você vê o avanço do que muitos têm denominado de a “nova direita” no Brasil, que defende pautas identitárias, as quais parte da esquerda também tem apoiado? Considerando que direita e esquerda, ao menos no Brasil, parecem ter pautas parecidas em alguns campos, o que é distintivo na esquerda hoje? Ainda faz sentido falar em pautas à direita e pautas à esquerda? Não seria mais produtivo falar em pautas da sociedade civil em geral?
 Às vezes desaparece a distinção entre direita e esquerda, e vimos isso nos governos. Por exemplo, Rafael Correa defende pautas da direita conservadora religiosa em relação a direitos reprodutivos, ecologia e vários assuntos. No Brasil, a esquerda não deixou de governar com os pastores mais homofóbicos. Mas, de um lado, eu não descartaria totalmente a distinção porque em alguns assuntos, às vezes, ainda fica claro uma esquerda possível, por exemplo, nas discussões pontuais sobre o papel do Estado, sobre direitos, sobre a relação entre o capital e o trabalho, a relação entre uma cidade inclusiva, entre o coletivo e o individual.
É verdade que a esquerda moderna, iluminista, também abandonou várias pautas que, por vezes, são lembradas e retomadas pela direita. Por outro lado, para falarmos do surgimento de uma nova direita, temos que analisar caso a caso, porque o governo Temer, por exemplo, não é uma nova direita e não sei se o Movimento Brasil Livre (MBL) é uma nova direita.
Também é verdade que essas pautas identitárias podem ser tomadas à esquerda e à direita, mas no Brasil elas são tomadas à esquerda, se pensarmos em um contexto de racismo, de patriarcado e de homofobia. Mas o liberalismo sabe lidar muito bem com isso, com as diferenças transformadas em identidades. Na minha avaliação, essa direita ou essa nova direita não assume as pautas do que seria um multiculturalismo inclusivo. Mas também o multiculturalismo não resolve as diferenças das sociedades, porque ele não encara o problema da constituição colonial da sociedade.
Discursos identitários 
Hoje a luta das mulheres é uma energia que, no contexto das nossas sociedades, é de esquerda e de possível
"Essas agendas funcionam como parte de um reposicionamento discursivo na hora em que se está fora do poder, mas meses atrás, quando se estava no poder, o racismo e a violência policial contra os negros na periferia não eram uma pauta" 
  
revitalização depois de tantas derrotas, mas ainda não vemos, a partir dessas lutas, uma alternativa. Vemos, ao contrário, uma falta de renovação, que facilmente incorpora um discurso de gênero, um discurso LGBT, um discurso da tolerância, mas sem realmente ser uma renovação. Essas agendas funcionam como parte de um reposicionamento discursivo na hora em que se está fora do poder, mas meses atrás, quando se estava no poder, o racismo e a violência policial contra os negros na periferia não eram uma pauta. Portanto, existe também uma hipocrisia e um cinismo na utilização de uma pauta com a qual até a direita razoável concorda. De todo modo, isso não pode ser o nosso horizonte de lutas.
Nessa necessidade de encontrarmos lugares para pensar, essas pautas podem servir como uma base para as lutas anti-homofobia, ecológica, antipatriarcal e anticapitalista. Mas também é preciso, quando nos organizamos e chegamos às instituições, que essas pautas não virem rapidamente questões secundárias. Hoje, a esquerda aceita abrir mão de pautas com as quais concorda e abandona no caminho as discussões sobre racismo, patriarcado e homofobia, porque primeiro considera que é importante fazer uma articulação no Congresso, possibilitando que a esquerda se sustente no poder.
Que leitura você faz da política argentina? A situação é parecida com a do Brasil, na qual, apesar da mudança de governo, há uma continuidade, como você mencionou antes, ou ao contrário, a situação é diferente?
É completamente diferente, mesmo quando se fala que existe uma continuidade, que de fato existe em algumas situações. Macri é a representação de setores empresariais sem nenhuma inserção popular. Eu explico sua chegada ao poder apenas pelo desmoronamento e destruição do kirchnerismo. Algumas pessoas preferem atribuir a vitória dele ao marketing político, ao modo como ele enganou a todos. No entanto, a perda do candidato da Cristina nos setores mais populares tem que nos levar a discutir o kirchnerismo também.
No governo da Cristina, em alguns assuntos, era possível encontrar soluções negociadas. Havia uma tentativa de não incomodar os poderosos, desde que o Estado pudesse usar parte da renda para políticas sociais. Isso foi mantido no governo Macri, até por uma questão estratégica, pois ele quer ganhar as eleições parlamentares do próximo ano.
Em alguns assuntos há diferenças, e eu concordo que a mobilização contra a direita tem que ser contundente, até porque a agenda é de acirramento e de uma radicalização conservadora profunda. É um cenário parecido de alguma forma, mas que ainda está em aberto, e isso tem mais a ver com as disputas dentro do poder e dentro da direita.

Na Argentina, por exemplo, vários governadores conservadores faziam parte do governo anterior. No entanto, no mundo, vemos uma direita que é até mais radical do que a direita do governo Temer ou do governo Macri. Portanto, para a esquerda, a resistência a esses governos tem que ser clara, mas não sem abrir uma discussão de horizontes e de imaginários que tenha como objetivo principal a necessidade de que a esquerda seja a posição das maiorias, e não somente um discurso que chega aos mais pobres.
Que leitura você faz da obra de Antonio Negri e dos conceitos metrópole, multidão e comum para pensar alternativas políticas e sociais à esquerda?
 A obra do Negri tem elementos importantes na hora de pensar a sociedade e a atualidade do capitalismo, e também ajuda a pensar como nos organizamos, nos agregamos e saímos da “bolha” a partir das diferenças, e para além das estruturas que são parte do regime de dominação – as estruturas do Estado nação e do mundo do trabalho.
Negri apresenta elementos para ir além do trabalho, para encontrar uma política da diferença, que foge desse mundo capitalista e moderno, com ferramentas, por exemplo, bem mais interessantes do que os nacionalismos oferecem como solução contra os liberalismos. Entre liberalismo e estatismo nacionalista, tem outro caminho, que é o caminho da autonomia, e Negri é um dos autores que ajuda a pensar esse lugar político de criação.
Você dialoga com grupos que estudam a obra de Negri nessa perspectiva?
Sim. Na verdade tem uma rede global de pessoas que estão pensando a política na América Latina a partir da autonomia, da qual as leituras do Negri fazem parte, mas também não só. Negri é uma pessoa com leituras políticas que, às vezes, podemos estar de acordo e outras, não. A visão que ele tem dos governos progressistas é diferente da minha.
Em que aspectos?
 Acredito que todos reconhecem que os governos progressistas são cada vez mais uma questão do passado, mas talvez na hora de pensar por onde nós nos reconstruímos ou encontramos caminhos, Negri é menos duro com o que foi a esquerda governista nos últimos anos. São discussões em movimento e, nesse espaço do que é o autonomismo, em cada país há leituras próprias sobre o que foram os governos de esquerda ou o progressismo de governo. Nesse aspecto vejo o Negri mais como um militante, um comunista que está tentando pensar, como tantos outros, como encontrar caminhos para entender o neoliberalismo, que é biopolítico, que não se exerce, necessariamente, a partir de uma presidência ou de outra, mas que é uma realidade de fato, com qualquer governo.
As tensões do autonomismo
autonomismo está passando por um momento interessante de discutir qual é o papel da esquerda em relação aos setores populares, e está passando por uma transformação de linguagem política também. Temos posições mais contra o Estado e outras mais a favor do Estado, mas sempre a partir do autonomismo como tensão, diferente de outras tradições políticas que têm esse aspecto já resolvido de alguma forma. Outras tradições políticas não discutem esse lugar comum da esquerda de procurar quem é o sujeito que está aí. O autonomismo tem uma visão mais complexa e mais atual em relação ao que é a sociedade e a vida hoje.
E, nesse sentido, há uma abertura na América Latina para se sair da civilização moderna do liberalismo individualista. Na América Latina temos linhas de fuga, de alguma forma, em direção à diferença, à possibilidade de outros projetos civilizatórios mais complexos ou que pensem para além da forma República, partido e sindicato. As lutas da Bolívia, as lutas do campo e da cidade, nesses movimentos novos, horizontais e com uma ideia de organização diferente, criam uma situação de experimentação com várias possibilidades que são interessantes e que estão em curso, onde o zapatismo, por exemplo, é importante, com diferentes caminhos.
Portanto, temos uma situação difícil, desesperadora, temos um consenso de direitas desenvolvimentistas bem consolidadas, mas, do outro lado, temos ferramentas para pensar a construção do comum, a construção de uma sociedade mais justa
 Na: http://www.carosamigos.com.br/index.php/politica/8348-a-esquerda-brasileira-fala-para-si-mesma-sem-uma-real-conexao-com-a-sociedade-2

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