segunda-feira, 13 de junho de 2016

Sociedade civil precisa conhecer o debate para combater a Ditadura do Judiciário


Por Brenno Tardelli, via Justificando


Poucos clichês são tão presentes no cotidiano jurídico quanto o advogado que diz não ser fácil a vida na advocacia. E, justiça seja feita, não é mesmo. Principalmente quando o pedido em favor do cliente tem que ser feito a um Judiciário autoritário e ignorante. Na última semana, eu, tu, ele, nós, vós e elas se chocaram com um desembargador que teve as manhas de mandar prender em um Habeas Corpus. O cúmulo.

Fosse uma justiça séria e preocupada com a prestação jurisdicional, José Damião Pinheiro Machado Cogan, esse senhor que proferiu a decisão esdrúxula, ficaria impedido de, no mínimo, continuar atuando na área criminal por profunda ignorância - ou má fé - na matéria. Se não fosse mandado embora por justa causa, que fosse mandado para a terapia, um curso de atualização, ou que arejasse em outra área do Judiciário. Mandar prender em Habeas Corpus independe de "liberdade de consciência": é sadismo mesmo, tesão por infligir a repressão em cima do acusado, sem que qualquer lei o ampare para tanto. 

Nosso sistema de justiça permite que o juiz seja sádico ou use de sua vida profissional para prender preto, negar direito a pobre e ir para casa dormir o sono dos justos. Por força da Constituição - essa mesma que juízes e juízas violam todos os dias - garante todo e qualquer direito que é possível se garantir a alguém. Juízes - e membros do Ministério Público - têm estabilidade no cargo; ditam o próprio salário, o qual é irredutível; são inamovíveis, isto é, a não ser que queiram, não há possibilidade de se manejar um sádico do cargo; caso a besteira que façam seja algo monumental (como foi o caso de Cogan), o máximo de punição seria a aposentadoria compulsória, com salário integral; além de outros inúmeros privilégios. É a Corte de Versailles [1]. Nada mais, nada menos. 

A construção do conceito (epistemologia) dessas garantias da magistratura decorre de um processo civilizatório de conquista da carreira que sempre ocupou um espaço privilegiado de poder, além de, em tese, permitir que medidas que desagradem “poderosos” possam ser tomadas. Trocando em miúdos: a fim de não sofrer represália do poderoso político X, a Constituição garante uma série de privilégios para o magistrado se sentir confortável na atuação. No campo prático, temos a Operação Lava Jato, comandada pelo juiz Sérgio Moro, em face de uma específica classe da elite financeira e política.

Talvez se ocorresse aos constituintes - aqueles que escreveram a constituição - que seria justamente o contrário, isto é, a classe jurídica seria endeusada pela população e mídia, as quais veem no Judiciário a alternativa de poder aos criminalizados Legislativo e Executivo, talvez a redação das garantias judiciais seria diferente. Vale dizer, "ricos e poderosos" sequer representam 1% da Justiça. Os corredores são apinhados de gente pobre de pele preta. São garantias de arbítrio em cima do que há de mais reprimido na nossa população - como se fosse Golias em cima de uma montanha atirando pedras em Davi.

No outro lado da moeda, parte específica da elite política e financeira vem comendo o pão que o diabo amassou nos tribunais há alguns anos. Não deixa de ser interessante, pois se trata justamente do governo que passou anos no poder e nada fez para democratizar a justiça - inclusive nomeou para o Supremo pessoas sem reputação ou saber jurídico para o cargo, falta de qualidade mais claras nas indicações de Tóffoli e Fux. Voltando ao calvário enfrentado por esse recorte da elite brasileira, o próprio STF tem sido palco da carnificina dos direitos. Talvez o que mais incorpora o estereótipo do Magistrado-Deus seja o indicado por FHC, ministro Gilmar Mendes, o grande retrato da magistratura brasileira. Uma das últimas de Gilmar foi quando, sem o menor pudor, ironizou na mídia um recurso do partido da presidenta afastada antes de julgá-lo - "Ah, eles podem ir para o céu, o papa ou o diabo". Tal conduta é proibida pela Lei Orgânica da Magistratura, mas que se dane. No Brasil, juízes podem tudo. São deuses - lembram do magistrado do RJ? Pois então...
O sistema de justiça nacional não só permite o sadismo, como estimula. Cogan é uma amostra de grande parte da magistratura na ativa por todo país. Quem pensa diferente sofre perseguição ideológica na carreira, como são os casos de diversos quadros da Associação Juízes para a Democracia, uma organização da carreira minoritária que propõe um pensamento alinhado aos direitos humanos, a resistência minoritária na carreira. O mais famoso caso de perseguição ao pensamento constitucional está aí para todos acompanharmos como novela - o processo sofrido por Kenarik Boujikian, “acusada” de soltar pessoas que estavam cumprindo pena além do tempo previsto na sentença. Ela sofre no Tribunal; Cogan é aplaudido - sem exageros, é aplaudido mesmo.

A ideologia do arbítrio, do endeusamento, reflete na estrutura da Corte. De certo, seria complicado imaginar um ministro intimidar quem fosse necessário para que sua filha de 33 anos, sem experiência jurídica, fosse nomeada desembargadora - caso de Marianna Fux, filha de Luiz Fux. Igualmente difícil conceber que cada desembargador desse país tenha um sedan de luxo com motorista para ir trabalhar todos os dias. Só em São Paulo há mais de 350 juízes estaduais de segunda instância. Aplique essa lógica a tribunais cuja própria existência seja algo de complexa lógica - Tribunais Militares ou Federais, por exemplo.

São tantos privilégios que a conta não fecha. Fica difícil justificar um reajuste acima de qualquer outro aos membros do Judiciário e Ministério Público, enquanto o país só fala em crise financeira e no impeachment. Talvez como recompensa pela fatura tão alta para legitimação do que está acontecendo, a Corte se acovarde e permita um golpe parlamentar tanto quanto conviveu pacificamente com a Ditadura, feitas as devidas exceções. Talvez a defesa mais cínica em torno do golpe seja o bordão "as instituições estão funcionando". Funcionando para quem, cara pálida?

Enquanto essa Corte de Versailles passa o trator em busca de seus próprios privilégios, a população recebe dela apenas manifestações arbitrárias de poder. Um dia o Poder acorda e resolve que a presunção de inocência não vale mais bulhufas; no outro, a epifania do magistrado de Curitiba conclui que é normal infringir a letra da lei para expor chefes de poderes na mídia; paralelo aos casos famosos, todos os dias, em nome do "combate à impunidade", varas espalhadas pelo país sangram direitos de gente pobre. Parece briga de rua, vale tudo, vale até prender em Habeas Corpus.

O menos democrático, fiscalizado e mais arbitrário Poder da República continuará dançando o baile do arbítrio até que a sociedade civil não se organize em torno desse debate. Protegido pelas palavras vetustas, pela arrogância do falso domínio da ciência jurídica e por sua ilusória imparcialidade, o Poder Judiciário constrói sua própria ditadura.

[1] Corte de Versailles: Centro do poder do Antigo Regime na França. Representa a opulência de uma minoria em face do resto do povo e marcou o ápice do poder absolutista do rei, representado em Luís XIV ("O Estado sou eu"). 

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